Qual
Brecht? Qual Mãe Coragem? Qual guerra?
Nos primeiros momentos a
emoção. Uma carroça estacionada no canto do palco anuncia o que virá. Na
plateia, logo ali na fila da frente, nossa Mãe Coragem/Anahy, Araci Esteves.
Ao iniciar o espetáculo, o
reconhecimento do texto, das falas. A apresentação da família de Anna Fierling.
Cada um toma um sobrenome. Cada um vem de um lugar, de um pai ou padrasto.
Somos todos acolhidos pelas asas de Coragem. Carmen-Maja Antoni já desenha ali
qual será a sua Mãe Coragem. Leve de aspecto, quase um duende em alguns momentos,
uma mulher forte, sarcástica, uma galinha que protege seus filhotes. A guerra
lhe serve para ganhar a vida, mas não lhe tirará os filhos.
Qual guerra? Qualquer uma. Esta
guerra, instituição abominável em que seres humanos mostram seus piores instintos,
suas mais grosseiras inclinações para a barbárie. O texto de Brecht inclui-se
entre as obras mais importantes a falar do que nos passa em tempos de batalha.
Lembro de É isto um homem? de Primo
Levi. Até onde vamos, quanto negociamos, quem vence e quem perde. O que resta
de humanidade quando nada mais resta?
Anna Coragem acredita que pode
lidar com isto. Um a um, porém, seus filhos vão caindo nas batalhas da vida.
Mas, a carroça não lhe fica mais leve. Ao contrário, há que puxá-la sozinha.
Esta carroça vida, há que carregá-la só. Não há negociação possível.
Bertolt Brecht tinha a guerra
como tema e causa em vários de seus textos. Um
homem é um homem, Os fuzis da Senhora
Carrar, entre outros. Neles, as relações humanas são pautadas pela
emergência. Ainda que mostre em quem acredita, Brecht não nos dá ilusões, somos
todos engambelados por nossa barbárie. Sempre se pode regatear um preço ou
tomar uma aguardente.
Os herdeiros do Berliner
Ensemble trazem um espetáculo vigoroso como a peça escrita por Brecht. Um
elenco afinado e de presença marcante, uma protagonista carismática, uma
encenação estranhada. Tudo é de verdade e nada é. Tudo teatro. Mãe Coragem e
seus filhos diferem dos outros personagens, seus rostos não são máscaras. Todos
os outros têm o rosto pintado. Pintado para a guerra. A família Coragem bordeja
a guerra, vive dela, mas tenta manter alguma humanidade.
Assim, cena após cena,
desenrola-se um espetáculo que segue à risca o legado de Brecht. Qual? O do
estranhamento, o do humor mesmo em tempos difíceis, o da relação direta com o
público.
É nas canções, porém, que para
mim se descortina o mais sublime da imensa e poderosa e avassaladora revolução
brechtiana. É impossível distanciar-se do que não nos aproxima. Lições de
Brietzke. Ao cantar como um ator, às vezes a voz falta, ou o tom não é bem
esse, mas suspende-se a ação e dá lugar ao ato da canção. Enquanto cantam, ator
e personagem se dão as mãos no mesmo lugar, porém desdobrados. A canção nos
toca e nos faz pensar.
Quando cantam, os atores do
Berliner lidam com a dialética forma de ir e voltar da emoção. Quando cantam,
remontam, para mim, a uma sensação de ter vivido tudo aquilo mesmo sem o ter
feito.
Talvez o espetáculo pudesse ter um ritmo mais
ágil, talvez as trocas de cena pudessem ter outra luz que nos deixasse espiar
os movimentos, talvez os diálogos pudessem variar mais em seus andamentos,
talvez...
Nada disso importa, no entanto,
quando Brecht e sua companhia mágica nos dizem que há que puxar esta carroça
com nossos amuletos, nossos destroços, nossas pequenas vitórias e nossas
canções.
Por fim, a emoção universal dos
atores encantados com a comunhão dos aplausos, dos gritos e da pulsação afinada
com a plateia. Pura emoção brechtiana.
*Mirna Spritzer é atriz e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
2 comentários:
Estava ansiosa esperando alguém comentar a peça. Mas não podia ser qualquer "alguém". Assim, nada melhor do que Mirna para fazer essa leitura desse espetáculo que me provoca muitas lembranças mesmo sem tê-lo visto. Sonhei com Sergio Silva essa noite. Afinal, foi por ele que me aproximei desse texto, desses personagens, desse dramaturgo. Acredito que meu professor também ficaria emocionado com tudo isso mas assim é a arte perpetuando os que já se foram dando força para os que ficaram.
Fiquei emocionada sem ver o espetáculo, só de ler as palavras da Mirna. Que previlégio ver o Berliner!
Louise Cardoso.
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