A montagem de Mãe Coragem e seus filhos, peça escrita
por Bertolt Brecht e estreada em 1939, inicia, segundo rubrica do autor, em plena guerra dos 30 anos (1618-1648), que ocorreu principalmente
na Alemanha, mas que chegou a envolver a maioria da Europa nos conflitos. A motivação
principal dessa longa altercação foi a rivalidade entre católicos e protestantes,
mas interesses territoriais e comerciais também contribuíram.
Os famosos efeitos-V
(de Verfremdungseffekt, que pode ser traduzido como “efeito de estranhamento”
ou “efeito de distanciamento”), criados por Brecht para serem aplicados em suas
peças, incluíam tabuletas (à moda elizabetana) onde eram antecipadas, no início
de cada cena, as ações que se dariam a seguir. Exemplo disso é a rubrica que
pode ser lida no início da primeira cena:
“1- PRIMAVERA DE 1624.
EM DELARNE, O GENERAL OXENSTJERNA RECRUTA TROPAS PARA A CAMPANHA DA POLÔNIA. A
VIVANDEIRA ANNA FIERLING, CONHECIDA PELO APELEIDO DE MÃE CORAGEM, FICA SEM UM
DE SEUS FILHOS”
Ao revelar que a Mãe
Coragem ficará sem um de seus filhos, a intenção do autor é transferir a tensão
do espectador do pólo do simples suspense (o que vai acontecer?) para o pólo da
reflexão (como isso vai acontecer? Por que a Mãe Coragem perderá um de seus
filhos?). E Brecht (1898-1956) sempre prezou a reflexão em seu teatro, não a colocando
em oposição ao divertimento: uma peça pode provocar a atividade do espectador e
diverti-lo. Está aí a Ópera dos três vinténs
que não me deixa mentir. Mas a base do pensamento de Brecht é marxista, e coloca como questão fundamental a separação entre aqueles que detêm o capital (e consequentemente o poder) e aqueles não têm acesso a ele (e que sofrem com isso). Anna Fierling está entre os segundos, e apesar de atitudes egoístas (como quando regateia o valor que deveria pagar para ter seu filho libertado, regatear esse que causa a morte do filho), é alvo de nossa simpatia. Não há maniqueísmo total: Anna Fierling é uma comerciante de coração duro, às vezes, mas também é uma mãe que ama seus filhos. Ambígua e dividida como todos os seres humanos.
A encenação de Claus Peymann
junto ao Berliner Ensemble – companhia fundada por Brecht e sua mulher, a atriz
Helene Weigel, em 1949 –, apesar de não reproduzir a clássica exibição das
tabuletas antecipatórias, introduz outros efeitos de estranhamento, na tradição
brechtiana. Exemplo disso é o palco inclinado, que remete à tradição operística.
Por ser em formato circular, a área de atuação dispõe o espectador a encontrar
o significado dessa inusitada forma, e que para mim é uma metáfora do caráter cíclico
das guerras, e, mais especificamente, da trajetória da Mãe Coragem, que passa a
vida entrando e saindo de campos de batalha, onde encontra os objetos que
venderá.
A iluminação
escancaradamente visível, em altas torres de ferro que comportam os refletores,
me recordaram a ambientação das arenas de boxe (um esporte admiradíssimo por
Brecht, que escreveu alguns textos em que encontra similaridades entre o boxe e
o teatro). Até mesmo os blecautes, que alguns consideraram excessivos, entre as
trocas de cenário, me pareceram coerentes à estética do distanciamento. Explico:
nos dias de hoje, é raro encontrar espetáculos que usem o blecaute dessa forma
funcional, para trocar cenários: o que se faz, normalmente, é expor ao público
essas contrarregragens e incorporá-las ao espetáculo, poetizando-as com alguns
artifícios (mudança na iluminação, trilha sonora para encobrir os ruídos). O que
Peymann fez vai na contramão disso: ao instituir o blecaute, onde a carroça é
trocada de lugar e outros elementos são trazidos à cena, o encenador parece nos
dizer: “agora precisamos fazer modificações no palco, não esqueçam que isso
aqui é uma peça de teatro. Esperem um pouco que vamos apagar a luz e mudar as
coisas. E não se preocupem, os barulhos que vocês ouvirem não são de nenhum dos
contrarregras se machucando, mas apenas objetos sendo arrastados”. O efeito que
a escuridão e os ruídos me provocaram são talvez aqueles previstos pelo
efeito-V brechtiano: jamais esqueci de que estava em um teatro, e que aquele
bando de homens de preto carregando e rearranjando a cena estava trabalhando
para que o teatro se fizesse. Sem ilusionismo.
É preciso ainda
mencionar o excelente trabalho dos atores, com destaque para a personificação
da Mãe Coragem. Fiquei comovido ao ver um grupo como o Berliner Ensemble, berço
das experiências de Brecht, executando à minha frente as belíssimas songs. Não é, ficou evidente, uma encenação
repleta de ousadias formais e narrativas, como as que já vimos aqui mesmo em
edições anteriores do Porto Alegre em Cena por grupos também alemães, como o fantástico
Volksbühne. Mas vimos, sim, a história
mesma do teatro em nossa cidade, em um dos maiores clássicos da dramaturgia
encenado pela casa de Brecht. Isso é inesquecível e me alimenta como artista.
*Marcelo Adams é ator e professor da graduação em Teatro: Licenciatura da UERGS
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