Fui
convidada pelo Marcelo Adams para escrever neste blog sobre Cão que morre não ladra, uma das
peças do repertório da Companhia do
Chapitô, que está sendo apresentada no Teatro do SESC e que assisti dia 5, na noite de
estreia.
Esta
é a segunda vez que o grupo participa do Festival. A primeira foi com a peça Leonardo , em
2001, sob a direção de John Mowat. O encenador inglês tem dirigido há 14 anos os
espetáculos da Companhia direcionados ao público adulto. A Companhia do Chapitô trabalha com equipes diferenciadas para o teatro adulto e o teatro infanto-juvenil. Foi neste
segundo núcleo que trabalhei quando
residi em Lisboa.
Estava
lá quando a Companhia criou alguns dos
seus espetáculos e pude testemunhar
o seu processo criativo. A base de trabalho é a cooperação e o método de
criação inclui o jogo e a improvisação.
As improvisações podem surgir a partir de ícones da dramaturgia clássica
como ocorreu nos casos de Tartufo, Medeia, A tempestade ou Édipo. Podem
surgir da adaptação de contos literários como em A aldeia das 4 casas e
História de quem perde a sombra. Podem
ser inspiradas em fortes referências culturais como Leonardo (da Vinci), Talvez Camões, Drákula ou O
grande criador (a Bíblia). E podem ter origem em temas fundamentais, como
aconteceu mais recentemente com os espectáculos Cão que morre não ladra e
Cemitério dos prazeres, duas variações sobre a relação das pessoas com a
morte.
Em todos os casos, os atores criam os espetáculos em
cumplicidade com o encenador. Desde a concepção dos projetos, passando pelo
processo de ensaios e pela fixação dos espetáculos, os atores são convidados a
refletir sobre o sentido de cada um dos seus gestos no tecido comunicativo da
obra.
Lembro de um ensaio a que assisti de O grande criador,
em que o diretor John Mowat e os três atores ficaram por muito tempo
experimentando a marcação de um dos momentos da crucificação de Jesus. Os
atores, o diretor e os convidados intercalavam-se, entrando e saindo de cena,
olhando de fora como especialistas, explorando o melhor ângulo do ponto de
vista da plateia para a composição plástica e arquitetônica da figura dos
atores. O que me chamou a atenção foi o rigor com que o grupo investigava o sentido
e a forma de uma pequena nuance da performance.
O corpo é o ambiente primordial onde estes criadores
buscam através do jogo e da irreverência sempre novas relações dramáticas.
Geralmente o palco com apenas três atores e alguns acessórios cênicos torna-se
povoado de personagens e os objetos utilizados adquirem múltiplas funções. Mas
a companhia não segue um modelo de encenação e comporta, ao longo da sua
carreira, experiências bem diferentes como a peça Cão que morre não ladra.
Neste espetáculo, cada ator representa uma só personagem e a função dos objetos
utilizados equivale à sua função na vida real. Desta vez, o ponto de partida
não foi um mito, nem derivou-se da adaptação de um clássico, mas partiu de um
tema: a morte. Criou-se uma comédia de humor negro.
Acompanhamos a incapacidade dos integrantes de uma
familia em lidar com a morte. Aliás, quem é capaz de lidar com isso? Para não
enfrentá-la, o pai, a mãe e, principalmente, o filho comportam-se de maneira
absurda procurando evitar o sofrimento e forjando a continuação da rotina
familiar.
Na maior parte do tempo a movimentação dos atores no
ambiente ficcional da sala, em torno da mesa de jantar, é contida, sem o caos
exterior costumeiro das peças da Companhia. Desta vez o caos é interno, na ambiguidade
das personagens que querem relaxar
apesar da grande tensão interna. Esta contenção nos mantém atentos, seguindo o
rastro dos focos precisos da encenação, que nos encaminha propositalmente ora
para o tamborilar nervoso de mãos de um ator, ora para um ruído nos bastidores,
ora para os objetos de cena que prendem o olhar dos atores. E assim
encaminhados pelo desenho dos focos de atenção criados no espaço , chegamos de
tempos em tempos na risada, no espanto e na admiração.
Gosto deste trilho sem concessões que o encenador
propõe, em que o palco traz um silêncio
e uma aridez desprovido de efeitos hipnóticos. Gosto da aparente simplicidade
das ações realizadas, que desembocam no
extraordinário trabalho corporal dos atores, quando, por exemplo, executam a
dança macabra em família.
Eu já havia assistido a esta peça em Lisboa e fiquei muita satisfeita com a participação
da Companhia do Chapitô no 19º Poa em Cena, pois tanto o público em geral como
a comunidade teatral estão tendo a
possibilidade de tomar contato com um grupo de grande relevância no
cenário teatral europeu. E, também, porque esta Companhia representa um esforço
eficaz na manutenção de um grupo de teatro, com equipe permanente, calcado no
trabalho do ator, na pesquisa de linguagem e com excelente sentido de humor.
* Gina Tocchetto é
atriz, diretora e professora de teatro
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