A arte em busca de uma vida desregrada
Na contramão de outros críticos, não
gosto de ler sobre o que os outros escreveram sobre o que eu vou ver seja no
cinema ou no teatro. Assim, posso ser
acusada de ignorância, mas nunca de plágio. Para mim, a arte, em todas as suas
formas, não deve exigir muitas explicações.
É claro que acho ótimo que tenha quem prefira ler antes de ver, pois,
senão, muito do valor do que eu mesma escrevo seria perdido. Então, vejamos: fui
convidada para comentar o espetáculo As
regras da arte de bem viver na sociedade moderna. De cara pensei que deveria
me concentrar nos aspectos mais formais, mas já fiz isso outras vezes e trunca
tudo. Tentando agradar sabe-se lá quem me desagrado profundamente. Por isso,
seguirei com meu estilo de escrever sobre teatro que, para quem me conhece já
sabe, sempre passa pelas minhas impressões e sensações.
O espetáculo é um monólogo, ou seja,
destaque total para o texto. Porém, por melhor que um texto seja, se não for bem
tratado, dito por uma única pessoa, vai causar mais tédio do que qualquer outra
coisa. A atriz Lorena Dias, no entanto, é impecável. Adjetivo, aliás, que se
encaixa perfeitamente no que se refere a essa peça. Bastam algumas poucas palavras para que o
público perceba, imediatamente, o tom cômico estabelecido por ela. O texto tem
seus exageros, mas me peguei pensando o que o tornava diferente de uma palestra
sobre etiqueta de Célia Ribeiro. Afinal,
quantas vezes eu ouvira todas aquelas regras nesses meus cinquenta anos? A
atriz, porém, mantém o controle o tempo todo, sem extrapolar nos gracejos e, por
isso mesmo, fazendo rir com seus deslocamentos pontuais no cenário mínimo: uma
poltrona antiga, um abajour, um copo d’água e seu figurino preto e branco, seus
gestos contidos. E é nessa identificação com tudo aquilo que é dito que
percebemos o absurdo daquele discurso, o bizarro daquelas imposições. Como
alguém pode ter levado aquilo tudo tão a sério por tanto tempo? Como pudemos
tentar seguir uma cartilha tão rigorosa? O espetáculo, montado a partir do texto
de Jean Luc Lagarce, põe por terra o politicamente correto (mas não sem antes
estender uma toalha) e, durante todo o tempo, nos faz lembrar situações de
nossas vidas. Eu, por exemplo, lembrei-me do casamento dos atores Marcos Chaves
e Ariane Guerra em que esta entrou fazendo pequenos movimentos com a cabeça,
cumprimentando os presentes. Foi a
primeira vez que vi uma noiva fazer isso, o que comprova que as regras, que
proíbem esse gesto, seguem interferindo até hoje na vida de muitos casais. Eu,
que não sou disciplinada o suficiente para encarar uma vida que respeite todos
esses preceitos, esperava um descontrole a todo o momento. Mas, “chutar o balde”
seria algo um tanto quanto previsível e, provavelmente, faria perder a força do
que o espetáculo nos provoca. E, como a Adriana Calcanhoto que não gosta do bom
senso e não gosta do bom gosto, qualquer coisa que questione e faça refletir
sobre as imposições da vida, como esse texto de um dos autores mais encenados na
França, me fará “expor a minha alegria ingênua” em ir ao teatro para sair
pensando que não deve haver regras para a arte e para quem sabe viver.
*Helena Mello é jornalista
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