O teatro ressuscita um morto
Variaciones Meyerhold do dramaturgo argentino
Pavlovsky, de quem tive a feliz oportunidade - e/ou a oportuna felicidade - de
assistir algumas montagens, vem me dar, mais uma vez, uma muito bem-vinda porrada
teatral no baixo ventre. Coincidentemente, há alguns dias, eu estava a ler
Do teatro, de Meyerhold. Acabei por deixar a obra inacabada,
esquecida dentro de uma pasta, no balcão do hall de entrada de um teatro, numa
cidade vizinha. Porém, assistir a este espetáculo no teatro Renascença, dentro
do programa do PoA em Cena, fez-me ver que as coincidências são, muitas vezes, significativas.
No livro de Meyerhold, único publicado em vida, lê-se o homem
falando - ou ouve-se a voz do homem, através das letras impressas. Ele é
humano, extremamente humano, em todas as suas críticas às
formas enrijecidas de sua época, tanto ao velho teatrão, duro e declamado,
quanto ao naturalismo do Teatro de Arte de Moscou. O que o estimulava e o fazia
buscar uma técnica nova de atuar eram os balagans (tendas de atrações das
feiras populares com seus palhaços e funâmbulos). Ele antevia (e queria) um
ator vivo, que se movesse inteiramente, e não apenas cabeças falantes sobre
corpos rígidos, como acontecia nos teatros russos da época.
Bueno, não vou ficar a teorizar a biomecânica - do que, aliás,
nada sei -, nem vou catar na onisciência do Google referências sobre a dita
cuja. Até porque, o que vi das tentativas de pô-la em prática, parecia-se
mais com “marionetismo” e "papagaísmo", do que a utilização de uma
arte vital e vitalizadora. Entonces, vou falar do que vi do grupo uruguaio que
aqui se apresentou: a peça da Comédia Nacional daquele país.
Achei-a genial na proposta. Poucos elementos cênicos, só os necessários
para algumas metáforas. Um ator (Jorge Bolani) vivendo intensamente um
personagem, numa mistura bem dosada de Stanislavski e Meyerhold - mostrando que
as duas técnicas não são excludentes (como alguns pensam), mas se
potencializam. Bolani costura a narração com o auxílio de Luis Martinez,
que interpreta dois papéis e toca acordeão ao vivo, e da atriz Gimena
Perez, que cria com corajosa delicadeza a companheira do protagonista.
A peça narra a vida de Meyerhold a partir
de sua prisão - de dentro dela -, rememorando sua trajetória
estética, que o levou a renovar o teatro russo. Desesperadamente, o homem de
teatro, diante das torturas a ele impostas na prisão, tenta recorrer a amigos
(antigos camaradas de revolução), para que o salvem de um fim absurdo (o fim de
quem se negava a se ajustar a um sistema absurdo - o stalinismo) - e, ainda da
prisão, troca cartas com Anton Tchekhov, considerando as cartas do grande
escritor um bálsamo contra o insuportável sofrimento.
Morreu sua
amada, esfaqueada no apartamento do casal, e morreu
ele, fuzilado, em 1940. Seu nome foi apagado da história russa por quinze
anos. Apagar nomes. Apagar fotos. Assassinar. Nisso aquele regime foi
exemplar. Nossas ditaduras, também.
Somente em 1955 - Stalin, já morto -, foram achados e sepultados os
resto mortais de Meyerhold. Daí par diante, sua obra foi, cada vez mais,
valorizada e reverenciada como um marco de transição para uma nova estética
teatral. Ao se recusar a reproduzir o real-socialismo (que, segundo o
personagem diz na peça, não era nem real, nem socialista), Meyerhold foi torturado
e assassinado por uma questão estética - um martírio ímpar no mundo. O dramaturgo
Pavlovsky e a Comédia Nacional do Uruguai, sob a direção de Lucio Hernández,
ressuscitaram-no. Meyerhold se levantou sobre o tablado do teatro Renascença e
sofreu de novo, cantou canções no idioma russo, sorriu e amou. Enfim - vivendo
de novo - me fez crer que o teatro ainda tem o poder demiúrgico de ressuscitar
os mortos.
* Camilo de Lélis é encenador
Um comentário:
Bela ressucitação!
Parabéns, Camilo, pelo comentário preciso, cuidadoso e fraterno, como a vida deveria ser.
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