04h40min. 10 de setembro de 2012. O computador me convoca a
saltar do leito insone. Assistira, na véspera, ao Ballet National de Marseille,
em sua segunda noite de apresentações no 19º
Porto Alegre em Cena. Tenho que escrever sobre isso. Aliás, “tenho”(?!)... não!
Sinto um desejo irrefreável de fazê-lo. Que jeito!
Corpo e mãos à obra!
Balê, Arte que eu desconheço, mas que
me fascina desde menino. Sempre tive um desejo, também irrefreável, de dançar. Desejo,
muito cedo, refreado. Portanto nunca dancei, nem estudei Dança (mas ainda
desejo, aos 57! Agora, com a coragem maior de um “homem” sobrevivente à “flor”
na próstata [não “na boca”] do título da peça pirandelliana). Arte que desconheço...em termos. Desconheço a nomenclatura, as regras, os conceitos, as técnicas
corporais, as diferentes linhas, métodos, tendências. Mesmo assim, meu corpo,
via de regra, se nega a admitir sua ignorância: se atira nas pistas de dança (claro,
quando encontra um espaço apropriado, seguro, de liberdade ou de experimentação).
Ali, me transformo num Travolta... Não, em um Baryshnikov! Um Nureyev! Um
Nijinsky! Até mesmo em uma Isadora
Duncan! Aí, adoto piamente a máxima de Nietzsche: “Só acredito em um Deus que
saiba dançar”. Creio mesmo é em Shiva Nataraja (nesse meu panteão em que também
incluo Dionísio)!
Será que o problema da falta de
público para a Dança (por extensão para o Teatro e as outras artes), deriva do
fato de trazer maior prazer àqueles que a praticam; àqueles que acreditam,
também, nesse deus nietzschiano e que se lançam às salas de ensaio (horas a fio
de trabalho diário) para incorporar técnicas extremamente difíceis e que parecem
ter a pretensão de que o reles corpo mortal possa se transforma ra tal ponto (às
vezes, até se deformar)...para transfigurar-se, enfim, em matéria extracotidiana, extra-humana, divina?!
Estariam bailarinos (e demais artistas) fadados a atingir, a tocar, com seu
trabalho insano, só aquela parcela reduzida de seres humanos que, como eles, pratica
ou estuda essas artes e que só por isso mesmo também consegue distinguir
diferentes escolas (clássico, moderno, jazz, contemporâneo, pós-moderno, etecetera
e tal)? Será que é isso que afasta, distancia o público da Dança (e das outras
artes), cada vez mais, hoje em dia? Essa, aparentemente, intransponível barreira
entre mortais e imortais, devotos e ateus? Considero-me entre os primeiros: bem mortal!...
mas devoto!
Creio que para ter prazer em
dançar basta entregar o corpo, mas para fruir a Dança é preciso entregar a alma
(coisa difícil em nossos dias, ainda mais em dias da enorme e diversificada
oferta do festival). Assim, lá estava eu na plateia do Teatro do Bourbon
Country: ansioso para entregar-me à experiência, buscando abrir-me ao novo, ou mesmo...ao
velho.Não havia nada que eu soubesse de antemão sobre o espetáculo, ou sobre a
ficha técnica; nem mesmo o nome das coreografias ou o histórico dos coreógrafos:
Tempo vicino de Lucinda Childs e Organizing demons de Emanuel Gat.
Parêntese: Esse era apenas um dos 22 espetáculos (o sexto) que eu,
com minha costumeira gula, comprara ingressos, no primeiro dia de vendas, por
volta do meio-dia, na Usina (outros 18 para minha partner; e tudo isso por pouco
mais de setecentos reais, em meu cartão de crédito da Caixa, sem enfrentar qualquer
fila. Eficiência e rapidez, surpreendentes). Difícil fazer minhas escolhas
entre, mais ou menos, 70 espetáculos, para serem apreciados em 20 dias!!!!
A primeira
coreografia começa. Um grupo de bailarinos, quase em círculo, no lado
direito do palco, em roupas de trabalho, sobre o tradicional linóleo. O palco
nu, sem qualquer outro elemento cenográfico. Acho que nem música havia, a
princípio. Apenas uma geral branca que formava uma espécie de corredor
iluminado, contornado por duas áreas escuras, paralelas ao proscênio. Iluminação
que se manteve inalterada, sem qualquer movimento, durante toda a performance. Os
bailarinos se deslocam, optando por permanecer ora na luz, ora na sombra. A
música parece não pertencer à coreografia, nem ser “dançada” pelos bailarinos, dando a
impressão de ter sido inserida após a criação das partituras corpóreas; surge e
desaparece, volta e meia, integrando-se ou não aos passos (ora independentes,
ora relacionados). Todas essas associações e dissociações principiam a construir
e desconstruir climas, tensões, imagens, novas relações. Os performers mostram
total domínio de seu instrumento, o corpo; têm precisão e presença. Apesar da
tão falada dramaturgia da dança (e sei que há uma distância incrível entre esta
e a teatral, que conheço melhor), não me parece, a princípio, que haja alguma
preocupação da coreógrafa em transmitir qualquer conteúdo ao público, quer
dizer, nenhuma preocupação que não seja a dramaturgia do corpo de seus “atores”.
Formas abstratas, desenhadas no espaço. Ações individuais de cada performer (que
parecem ter nascido da improvisação antes de serem fixadas) e a inter-relação dessas
com a música, com o espaço, com a luz ou a sombra e (acima de tudo) com a nossa
percepção, como público. O que acontecia no palco...ora atraía minha atenção,
ora abria espaço para que eu voasse para dentro de mim mesmo (e até para fora
do teatro). Independente de minha vontade, e da vontade deles (eu acho). Tudo
isso criava climas tensos, até mesmo trágicos. Climas shakespearianos,
macbethianos... em meu corpomente. Percebidos por mim como os meus próprios
fantasmas (meu Macbeth, de 1989, e
meus outros demônios ao longo de meus 57, por exemplo) se manifestando como
sombras nas paredes da caverna de Platão. Coisas minhas, não deles. Eu acho...
Intervalo de 20
minutos. No fumódromo, uma pessoa desconhecida está encantada com o Teatro
do Bourbon, pela primeira vez, frequentado por ela; entretanto, sem saber, ainda,
se gostara, ou não, do que presenciara no palco. Logo, aparecem dois companheiros,
do ofício teatral, que não apreciaram a primeira coreografia. A meu ver, porque
estariam a procurar por uma história, um conteúdo, que o grupo não oferecera.
Disse-lhes: “Penso que a Dança, nem sempre, quer dizer alguma coisa. É como
pintura abstrata que não se deve procurar entender, pelo menos, não com a mente”.
Conto-lhes minhas impressões. “Que viagem a tua!”, dizem eles. Pode ser. Mas eu
queria muito ouvir as impressões de alguém da Dança. Vira tantos por ali, antes (Eduardo
Severino, Eva Schul, Cibele Sastre...).
Segunda coreografia. Ao
reverso da outra, que ao primeiro olhar dava a impressão de um ensaio geral (ainda
na sala de trabalho, no espaço privado do grupo), esta é uma apresentação ao
gosto do público, menos experimental, palatável (penso eu). O cenário também é
simples: linóleo e rotunda brancos. Figurinos: vermelho e café. O grupo de
performers, como o outro, tem absoluto controle de sua técnica (depois descobri
por uma amiga bailarina: técnica clássica). São extremamente leves e ágeis,
revezando-se, constantemente, num tipo de “entradas e saídas” que me lembram as
coreografias de Rodrigo Pederneiras. Aqui e ali também percebo uma possível
influência do nosso Grupo Corpo, de quem sou fã de carteirinha, desde a Missa do Orfanato; reconheço nos quadris
dos franceses... ma marca de “brasilidade” que costumo chamar “malemolência” dos
bailarinos do Corpo, na maior parte de seus trabalhos, desde Nazareth (na minha opinião, esta é uma
obra prima da Dança Brasileira). Tempo
vicino, bonito e muito bem executado, não mexeu comigo, mas agradou ao
público que aplaudiu esta com muita maior entusiasmodo que a primeira. Ao final,
a opinião deuma bailarina: Cibele Sastre. Ela, como eu, gostou mais da
coreografia inicial. Como expert e conhecedora do trabalho dos coreógrafos, confidenciou-me
que ainda tentava digerir o estranhamento que lhe causara a proposta de Lucinda
Childs. Segundo Cibele, uma coreografia aos moldes do que esta renomada
coreógrafa costumava fazer, décadas atrás, tipicamente, contemporânea, pós-clássica
ou pós-moderna (agora, não consigo lembrar bem o termo empregado por ela, na
saída do Bourbon) e que parecia não encaixar bem no corpo de baile de Marselha, de
formação clássica, segundo ela. Sastre nem chegou a achar tão absurdas minhas
colocações sobre as possíveis influências do Grupo Corpo (grande parte de
pessoas da Dança não admira tanto o Grupo Corpo, como eu, que até já abri mão
de um dos 22 espetáculos que havia comprado o ingresso, antes, para acompanhar
a nova passagem deles e Pederneiras, por aqui, justo no meio da grade do Em
Cena. Afinal, a vida é feita através de nossas opções, não é? Não
poderia perdê-los de jeito algum!).
No dia seguinte,
após assistir Caetana, no Teatro de
Câmara, encontro Carlota Albuquerque e outros dois integrantes do Terpsí
(Angela Spiazzi e Raul Voges). Comento brevemente com eles, na saída do
espetáculo, minhas impressões sobre o Balê de Marselha. Carlota, para minha
surpresa, concorda com minhas observações sobre as relações que fiz entre o
trabalho apresentado nas duas noites anteriores (ela viu na estreia) e ainda
completa: “a segunda coreografia lembra os trabalhos iniciais do Corpo, só que”, segundo ela, “estes (os bailarinos
brasileiros) eram muito melhores...”. Ela também sentiu um outro estranhamento: “O
grupo francês não traz nada de, realmente, seu, nem de sua terra. Nem mesmo o
trabalho coreográfico. Lucinda é americana e Emanuel israelense”.
Em minha ignorância e pensando que o programa do festival trazia
a ordem correta de apresentação das coreografias, havia escrito eu (até às 7h
daquela madrugada, insone): “Apesar do título – Organizing demons – não vi nessa coreografia” (referindo-me,
equivocadamente, a de Childs, que foi a segunda) “qualquer dos demônios que me
haviam assaltado, antes, durante a primeira parte do espetáculo” (que era, na
verdade, a de Gat). Por um lado, foi um equívoco providencial, pois,
felizmente, eu vira demônios no palco, sem qualquer influência trazida pelo
título da peça coreográfica. Graças aos deuses, Shiva e Dionísio, li a crítica
escrita por Airton Tomazzoni (publicada na ZH de ontem), somente hoje, mas ainda
a tempo de corrigir este comentário... sem acrescentar ao texto outros tantos
sacrilégios próprios de um humilde, mas atrevido, neófito em Dança.
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro
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