sábado, 22 de setembro de 2012

Ballet National de Marseille por Mauricio Guzinski


04h40min. 10 de setembro de 2012­­­­­­. O computador me convoca a saltar do leito insone. Assistira, na véspera, ao Ballet National de Marseille, em sua segunda noite de apresentações no 19º Porto Alegre em Cena. Tenho que escrever sobre isso. Aliás, “tenho”(?!)... não! Sinto um desejo irrefreável de fazê-lo. Que jeito!
Corpo e mãos à obra!
Balê, Arte que eu desconheço, mas que me fascina desde menino. Sempre tive um desejo, também irrefreável, de dançar. Desejo, muito cedo, refreado. Portanto nunca dancei, nem estudei Dança (mas ainda desejo, aos 57! Agora, com a coragem maior de um “homem” sobrevivente à “flor” na próstata [não “na boca”] do título da peça pirandelliana). Arte que desconheço...em termos. Desconheço a nomenclatura, as regras, os conceitos, as técnicas corporais, as diferentes linhas, métodos, tendências. Mesmo assim, meu corpo, via de regra, se nega a admitir sua ignorância: se atira nas pistas de dança (claro, quando encontra um espaço apropriado, seguro, de liberdade ou de experimentação). Ali, me transformo num Travolta... Não, em um Baryshnikov! Um Nureyev! Um Nijinsky!  Até mesmo em uma Isadora Duncan! Aí, adoto piamente a máxima de Nietzsche: “Só acredito em um Deus que saiba dançar”. Creio mesmo é em Shiva Nataraja (nesse meu panteão em que também incluo Dionísio)!
Será que o problema da falta de público para a Dança (por extensão para o Teatro e as outras artes), deriva do fato de trazer maior prazer àqueles que a praticam; àqueles que acreditam, também, nesse deus nietzschiano e que se lançam às salas de ensaio (horas a fio de trabalho diário) para incorporar técnicas extremamente difíceis e que parecem ter a pretensão de que o reles corpo mortal possa se transforma ra tal ponto (às vezes, até se deformar)...para transfigurar-se, enfim, em matéria extracotidiana, extra-humana, divina?! Estariam bailarinos (e demais artistas) fadados a atingir, a tocar, com seu trabalho insano, só aquela parcela reduzida de seres humanos que, como eles, pratica ou estuda essas artes e que só por isso mesmo também consegue distinguir diferentes escolas (clássico, moderno, jazz, contemporâneo, pós-moderno, etecetera e tal)? Será que é isso que afasta, distancia o público da Dança (e das outras artes), cada vez mais, hoje em dia? Essa, aparentemente, intransponível barreira entre mortais e imortais, devotos e ateus? Considero-me entre os primeiros: bem mortal!... mas devoto!
Creio que para ter prazer em dançar basta entregar o corpo, mas para fruir a Dança é preciso entregar a alma (coisa difícil em nossos dias, ainda mais em dias da enorme e diversificada oferta do festival). Assim, lá estava eu na plateia do Teatro do Bourbon Country: ansioso para entregar-me à experiência, buscando abrir-me ao novo, ou mesmo...ao velho.Não havia nada que eu soubesse de antemão sobre o espetáculo, ou sobre a ficha técnica; nem mesmo o nome das coreografias ou o histórico dos coreógrafos: Tempo vicino de Lucinda Childs e Organizing demons de Emanuel Gat.
Parêntese: Esse era apenas um dos 22 espetáculos (o sexto) que eu, com minha costumeira gula, comprara ingressos, no primeiro dia de vendas, por volta do meio-dia, na Usina (outros 18 para minha partner; e tudo isso por pouco mais de setecentos reais, em meu cartão de crédito da Caixa, sem enfrentar qualquer fila. Eficiência e rapidez, surpreendentes). Difícil fazer minhas escolhas entre, mais ou menos, 70 espetáculos, para serem apreciados em 20 dias!!!!
A primeira coreografia começa. Um grupo de bailarinos, quase em círculo, no lado direito do palco, em roupas de trabalho, sobre o tradicional linóleo. O palco nu, sem qualquer outro elemento cenográfico. Acho que nem música havia, a princípio. Apenas uma geral branca que formava uma espécie de corredor iluminado, contornado por duas áreas escuras, paralelas ao proscênio. Iluminação que se manteve inalterada, sem qualquer movimento, durante toda a performance. Os bailarinos se deslocam, optando por permanecer ora na luz, ora na sombra. A música parece não pertencer à coreografia, nem ser “dançada” pelos bailarinos, dando a impressão de ter sido inserida após a criação das partituras corpóreas; surge e desaparece, volta e meia, integrando-se ou não aos passos (ora independentes, ora relacionados). Todas essas associações e dissociações principiam a construir e desconstruir climas, tensões, imagens, novas relações. Os performers mostram total domínio de seu instrumento, o corpo; têm precisão e presença. Apesar da tão falada dramaturgia da dança (e sei que há uma distância incrível entre esta e a teatral, que conheço melhor), não me parece, a princípio, que haja alguma preocupação da coreógrafa em transmitir qualquer conteúdo ao público, quer dizer, nenhuma preocupação que não seja a dramaturgia do corpo de seus “atores”. Formas abstratas, desenhadas no espaço. Ações individuais de cada performer (que parecem ter nascido da improvisação antes de serem fixadas) e a inter-relação dessas com a música, com o espaço, com a luz ou a sombra e (acima de tudo) com a nossa percepção, como público. O que acontecia no palco...ora atraía minha atenção, ora abria espaço para que eu voasse para dentro de mim mesmo (e até para fora do teatro). Independente de minha vontade, e da vontade deles (eu acho). Tudo isso criava climas tensos, até mesmo trágicos. Climas shakespearianos, macbethianos... em meu corpomente. Percebidos por mim como os meus próprios fantasmas (meu Macbeth, de 1989, e meus outros demônios ao longo de meus 57, por exemplo) se manifestando como sombras nas paredes da caverna de Platão. Coisas minhas, não deles. Eu acho...
Intervalo de 20 minutos. No fumódromo, uma pessoa desconhecida está encantada com o Teatro do Bourbon, pela primeira vez, frequentado por ela; entretanto, sem saber, ainda, se gostara, ou não, do que presenciara no palco. Logo, aparecem dois companheiros, do ofício teatral, que não apreciaram a primeira coreografia. A meu ver, porque estariam a procurar por uma história, um conteúdo, que o grupo não oferecera. Disse-lhes: “Penso que a Dança, nem sempre, quer dizer alguma coisa. É como pintura abstrata que não se deve procurar entender, pelo menos, não com a mente”. Conto-lhes minhas impressões. “Que viagem a tua!”, dizem eles. Pode ser. Mas eu queria muito ouvir as impressões de alguém da Dança. Vira tantos por ali, antes (Eduardo Severino, Eva Schul, Cibele Sastre...).
Segunda coreografia. Ao reverso da outra, que ao primeiro olhar dava a impressão de um ensaio geral (ainda na sala de trabalho, no espaço privado do grupo), esta é uma apresentação ao gosto do público, menos experimental, palatável (penso eu). O cenário também é simples: linóleo e rotunda brancos. Figurinos: vermelho e café. O grupo de performers, como o outro, tem absoluto controle de sua técnica (depois descobri por uma amiga bailarina: técnica clássica). São extremamente leves e ágeis, revezando-se, constantemente, num tipo de “entradas e saídas” que me lembram as coreografias de Rodrigo Pederneiras. Aqui e ali também percebo uma possível influência do nosso Grupo Corpo, de quem sou fã de carteirinha, desde a Missa do Orfanato; reconheço nos quadris dos franceses... ma marca de “brasilidade” que costumo chamar “malemolência” dos bailarinos do Corpo, na maior parte de seus trabalhos, desde Nazareth (na minha opinião, esta é uma obra prima da Dança Brasileira). Tempo vicino, bonito e muito bem executado, não mexeu comigo, mas agradou ao público que aplaudiu esta com muita maior entusiasmodo que a primeira. Ao final, a opinião deuma bailarina: Cibele Sastre. Ela, como eu, gostou mais da coreografia inicial. Como expert e conhecedora do trabalho dos coreógrafos, confidenciou-me que ainda tentava digerir o estranhamento que lhe causara a proposta de Lucinda Childs. Segundo Cibele, uma coreografia aos moldes do que esta renomada coreógrafa costumava fazer, décadas atrás, tipicamente, contemporânea, pós-clássica ou pós-moderna (agora, não consigo lembrar bem o termo empregado por ela, na saída do Bourbon) e que parecia não encaixar bem no corpo de baile de Marselha, de formação clássica, segundo ela. Sastre nem chegou a achar tão absurdas minhas colocações sobre as possíveis influências do Grupo Corpo (grande parte de pessoas da Dança não admira tanto o Grupo Corpo, como eu, que até já abri mão de um dos 22 espetáculos que havia comprado o ingresso, antes, para acompanhar a nova passagem deles e Pederneiras, por aqui, justo no meio da grade do Em Cena. Afinal, a vida é feita através de nossas opções, não é? Não poderia perdê-los de jeito algum!).
No dia seguinte, após assistir Caetana, no Teatro de Câmara, encontro Carlota Albuquerque e outros dois integrantes do Terpsí (Angela Spiazzi e Raul Voges). Comento brevemente com eles, na saída do espetáculo, minhas impressões sobre o Balê de Marselha. Carlota, para minha surpresa, concorda com minhas observações sobre as relações que fiz entre o trabalho apresentado nas duas noites anteriores (ela viu na estreia) e ainda completa: “a segunda coreografia lembra os trabalhos iniciais do Corpo, só que”, segundo ela, “estes (os bailarinos brasileiros) eram muito melhores...”. Ela também sentiu um outro estranhamento: “O grupo francês não traz nada de, realmente, seu, nem de sua terra. Nem mesmo o trabalho coreográfico. Lucinda é americana e Emanuel israelense”.
Em minha ignorância e pensando que o programa do festival trazia a ordem correta de apresentação das coreografias, havia escrito eu (até às 7h daquela madrugada, insone): “Apesar do título – Organizing demons – não vi nessa coreografia” (referindo-me, equivocadamente, a de Childs, que foi a segunda) “qualquer dos demônios que me haviam assaltado, antes, durante a primeira parte do espetáculo” (que era, na verdade, a de Gat). Por um lado, foi um equívoco providencial, pois, felizmente, eu vira demônios no palco, sem qualquer influência trazida pelo título da peça coreográfica. Graças aos deuses, Shiva e Dionísio, li a crítica escrita por Airton Tomazzoni (publicada na ZH de ontem), somente hoje, mas ainda a tempo de corrigir este comentário... sem acrescentar ao texto outros tantos sacrilégios próprios de um humilde, mas atrevido, neófito em Dança.
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro

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