Tenho o maior respeito pela opinião
de Flávio Mainieri, um de meus queridos Mestres. Foi excelente professor da
disciplina Dramaturgia Contemporânea, durante
o curso de Pós-Graduação Teoria do
Teatro Contemporâneo, realizado pelo DAD/UFRGS. Especialização que tive a
oportunidade de concluir, em 2001, momento em que tive o privilégio de
conhecê-lo mais de perto. Segundo Flávio Mainieri, “Em Deus da Ccrnificina a tensão entre as
personagens aumenta e revela a crise conjugal e das relações interpessoais
enfrentada pelos dois casais, comprovando que o homem, na sua natureza, carrega a violência. Em sua essência, o homem é um ser violento, um nada é suficiente
para que o selvagem que habita em nós se manifeste desmanchando o verniz
civilizado – esse é o verdadeiro tema da peça (os grifos são meus).” (...) “Não
posso deixar de fazer referência, como contraponto, a um dos ensinamentos do
mestre Brecht” (...) “ o teatro deve mostrar o mundo como possível de
modificação, e o homem não deve ser mostrado como algo acabado – o homem não é,
ele se transforma.”
Concordo com o pensamento de Brecht,
lembrado por Mainieri. Apesar de não assinar embaixo de sua cartilha, hoje em
dia. Nem eu, nem mesmo o Berliner Ensemble
do nosso tempo. Nem do ponto de vista estético, nem do ideológico. Não é mais
possível concordar, totalmente, com o Mestre Brecht. Vivemos em uma época
diversa, que pode até ser considerada niilista; vivemos o tempo de derrocada
das utopias, de queda de muros, de derrubada de torres-gêmeas; de
comunismo-capitalista; da morte de nossos ídolos, da agonia do heroísmo, e
outras tantas “contemporaneidades”.
Uma das colocações que mais me
agradou na entrevista de Jutta Ferbers, dramaturgista do Berliner, concedida ao jornal ZH (04/09/12) foi de que o
“ensemble” não considera Brecht "algo sagrado", não o entende como um
“professor”, mas sim como “um diretor” que “gostava das pessoas rindo.” (...)
“Essa teoria” (a de Brecht) “foi escrita em um tempo específico, para um tipo
de teatro específico. A única questão é
fazer teatro para as pessoas abrirem os olhos e ouvidos. E bocas (risos)”
(os grifos são, novamente, meus).
Data venia, querido Mestre, por meu
viés altamente subjetivo e muito menos erudito, me atrevo a discordar de suas
colocações.
Belo texto este de Yasmina Reza,
dramaturga nascida na Argélia (1959) e radicada na França. Ótimo roteiro,
assinado, por ela e Polanski, que resultou em mais uma grande obra desse
excelente e polêmico diretor de origem polonesa, nascido em Paris (1933, onde
vive “refugiado” a partir de 1977). Quase deixei de assistir ao filme,
influenciado negativamente por sua crítica, professor! Seria uma lástima.
Adorei! Para mim o filme está ente os melhores deste ano. Polanski (não só em
minha opinião) foi criador de obras memoráveis como Repulsa ao sexo (1965), A
dança dos vampiros (1967, filme em que ele aparece ao lado de Sharon Tate,
antes que eles e seu filho fossem brutalmente atingidos pelo deus da
carnificina, em 1969), O bebê de Rosemary
(1968), A tragédia de Macbeth
(1971), Tess (1979, dedicado à sua
esposa, brutalmente, assassinada aos 26 anos, durante o oitavo mês de gravidez,
pelos fanáticos da “família” Manson. A enorme repercussão deste crime chegou a
provocar mudanças nas leis americanas), A
morte e a donzela (1994), O pianista (2002),
O escritor fantasma (2010) e Carnage (2012). Ou seja, antes de Reza,
ele já havia incursionado, com êxito, pela literatura dramática, pelo menos
duas vezes, ao adaptar para a tela William Shakespeare e Ariel Dorfman (que
teve a mesma obra encenada, aqui, pela Tribo de Atuadores ÓiNóis Aqui traveiz,
em 1997).
Em sua reflexão sobre o filme e a peça (publicada na ZH de
13/06/12), Mainieri afirma que Yasmina “usa temas que (...) não são
aprofundados”, que ela é superficial, “uma leitora de manchetes dos jornais”
(desta vez, em sua opinião, publicada no ZH de 14/09/12) e que ele, Flávio
Mainieri, “Ao sair do teatro, e do cinema também, tinha a certeza de ter
assistido a um espetáculo com um texto falsamente
moderno, inclusive pela ausência de
uma história, que é um dos elementos do teatro pós-dramático, e que
postulava o retrógrado preceito de que o homem é intrinsecamente mau, dominado pelo deus da carnificina”(em
13/06/12, com grifos meus).
Não tive a oportunidade de conhecer Reza, em Paris
(sequer ler o texto no idioma original), nem assistir suas encenações nos
teatros privados, de lá. Segundo o
professor Mainieri: “teatros que não perdem de vista o lucro, satisfazendo
desta forma o que a indústria cultural identifica como a vontade/gosto do
público.” Não conheci Le dieu du carnage (2006)
no idioma e versão originais, nem na versão uruguaia, apresentada na 16ª edição
de nosso festival. Infelizmente, não assisti. Fui conhecer essa obra na telona,
através dos olhos, lentes e filtros de Polanski, e através do corpovoz de Kate Winslet e Christoph Waltz, estes nos papéis de pais do
menino agressor; e Jodie Foster e John C. Reilly, encarnando os pais do menino
agredido. Quatro excelentes atores hollywoodianos que tiveram seu talento
extraído, ao máximo, pelo experiente diretor franco-polonês, forçado a filmar
na França. Só então conheci o texto da dramaturga argelina, já roteirizado por
ela e Polanski, no cinema, em inglês com legendas em português. É bem possível
que isso – forma de contato com a obra, bagagem pessoal de informações e
subjetividade de cada receptor – tenha feito toda a diferença e tornado nossos
pontos de vista tão divergentes. Por mais que me constranja contrapor-me a meu
professor, me senti no dever de fazê-lo.
Por mais banal que a fábula de
Yasmina possa ser considerada – um menino de 11 anos é agredido por um de seus
colegas de escola, forçando um encontro dos pais do “suposto agressor” com os
progenitores da “vítima”, na tentativa de superação do problema – a história existe (não só nas manchetes de jornal
do mundo inteiro, mas no texto, na tela e no palco). Reza toma como ponto de
partida o tão debatido bullying para
escancarar a origem do crescendo de violência que presenciamos em nosso
cotidiano. “O texto de Yasmina é enxuto”, como diz Flávio. No meu entender
também. Não há uma palavra (aliás que belo jogo de palavras o que é proposto
por essa autora, nesse texto), não há uma única ação que não contribua para o
acirramento do conflito, para a melhor compreensão do tema e para o
desnudamento, o despencar das máscaras sociais, a exposição do ego de cada uma
das quatro personagens, muito bem construídas pela autora, pelo quarteto
excepcional de atores, magistralmente conduzidos pela batuta de Roman Polanski.
Difícil respirar, durante a exibição, no cinema Guion.
Na minha opinião, Deus da carnificina, não é um texto
maniqueísta, moralista, niilista ou determinista; não apresenta o homem
irreversivelmente perdido, incapaz de transformar sua consciência, nem de subir
mais um degrau na escala de sua evolução. Essa complexa tarefa, sem qualquer
ranço de um teatro panfletário ou didático, é lançada para que o espectador a
resolva. Em um exercício que pode ser considerado a função mais nobre da arte.
Não fosse assim, o texto não teria sido escolhido (“eu acho”) pelas duas
equipes, como o mote de suas criações, submetidas ao nosso crivo.
Se, ao invés de montagem cinematográfica,
a obra de Polanski fosse encenação teatral, eu diria que o diretor e sua
equipe, que incluiu Yasmina Reza, dividindo com ele a adaptação do roteiro de
sua criação, tiveram o Mestre Brecht como uma de suas estrelas guia: “A única questão (deles) é fazer Teatro (Cinema ou Arte. As maiúsculas são minhas) para as pessoas abrirem os olhos e ouvidos.
E bocas.” (para rir e, eventualmente,
para tomar fôlego).
O quarteto de personas é composto com a clareza de quem até
parece saber estudar a alma humana através do eneagrama (suspeito que
Shakespeare tenha sido outro criador teatral que também soube utilizar essa
ferramenta, diante da diversidade de personalidades tão precisas, completas e
complexas que sua obra apresenta – obra centrada, também, no poder da palavra;
naquilo que a palavra poética pode oferecer aos nossos sentidos; no poder
transformador que a reflexão provocada pela escuta das palavras, vindas de um
autor/ator, no palco, pode trazer aos mecanismos de funcionamento de quem se
entrega à recepção de uma obra teatral).
(continua)
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro
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