Entre ser e parecer
Yasmina Reza é uma
dramaturga muito em voga na moderna dramaturgia do Século XXI. Argelina radicada na França, explodiu nos anos 90 com a
peça Arte, sucesso em diversos países, incluindo o Brasil, cuja
montagem em 1998, com direção de Mauro Rasi, fez sucesso no eixo Rio-São
Paulo. Já foi levado aos palcos em mais de 30 países. Desde então, ela não parou mais: escreveu uma série de peças, comédias e
romances, todos muito bem sucedidos, tornando-se uma celebridade no universo
intelectual francês e europeu.
Em consonância com a versão
cinematográfica, estreada ano passado e tendo no seu elenco atores talentosos
do cinema europeu e americano como Kate Winslet, Christoph Waltz, Jodie Foster
e John C. Reilly, somos apresentados em Carnage a um drama burguês, que
norteia muito dos textos contemporâneos da dramaturgia universal, onde o espaço
utilizado pela autora é uma sala de uma casa de um casal de classe média, que
cria seus filhos da forma que a sociedade dita no padrão comum, e parecem o
que os pais gostariam que eles parecessem, ou pelo menos eles acham que são.
Mas aqui somos brindados com um texto criativo e sagaz, como o são os textos da
Sra. Reza, que enfatiza nos diálogos o que está subjacente na cena. E falando em
filhos, esses são a mola propulsora do conflito dramatúrgico que rege a
história, onde o casal Verônica e Michel (interpretados respectivamente por
Deborah Evelyn e Orã Figueiredo) recebem o casal Alan e Anete (Paulo Betti e
Júlia Lemmertz) aparentemente empenhados em conversar sobre a briga dos filhos pré-adolescentes
no colégio. A reunião, porém, torna-se cada vez menos civilizada à medida que o
tempo passa, revelando a frágil tentativa de manter controle das próprias
reações e trazendo à tona preconceitos arraigados que demostram a diferença de
classes sociais. No decorrer da encenação os personagens se revelam, mostrando
traços de si que estavam escondidos, mudando o discurso corrente e desviando do
conflito gerador da história.
A tão voluntariosa mãe que
teve seu filho agredido, defensora de uma punição e de uma moral para o filho
agressor, na real não é o que parece, ou na figura que ela tenta construir,
o mesmo cabendo a seu marido a quem em um diálogo revelador dele, diz que se
“embonecou e colocou uma roupa melhor para receber as visitas” a pedido da
esposa. Anete, a mãe do agressor, que
tenta através da conversa pacificar e descobrir a origem do problema tem em sua
interprete, Júlia Lemmertz, um achado, pois ela empresta o grau certo de
passividade e crescente torpor agressivo às cenas, no
decorrer de sua interpretação. Paulo Betti, na pele de Alan, tem seus maiores
momentos nos silêncios que o personagem se coloca, em dois pontos chaves da
ação dramática, evidenciando sua incapacidade de saber o que fazer mais na
situação em que se encontram todos naquela sala. E cada qual a sua maneira,
como percebemos pelo texto, vai perdendo sua diplomacia primeira.
E citando o texto, é notável
que este seja limitante e previsível, mesmo sendo criativo e inventivo no seu
todo, causando pela situação gerada com seus interpretes risos na plateia em
inúmeros momentos, resultado obtido pelo conjunto de interpretações e pela
direção que coloca a dramaturgia a serviço de um diálogo constante entre
personagens e público, e que é um dos fatores determinantes para o engraçamento
da história. Realmente o timing de Paulo, Orã e Deborah é acertado e as conjunções
a que seus personagens se expõem são de uma comicidade que se quer impor à
situação. Júlia, que num primeiro momento me parece deslocada e fora do
conjunto, consegue fazer seu personagem girar e devido à boa interprete que é,
desfaz certa previsibilidade que paira no ar desde as primeiras cenas, onde o
público
percebe logo quais serão os desdobramentos da proposta apresentada.
Na direção de atores, Emilio
de Mello poderia ter dado uma contenção um pouco maior, pois Deborah e Orã, mais
que Paulo e Júlia têm a tendência a sublinhar mais do que preciso, em alguns
pontos, as intenções dos personagens. Contenção essa que deve ter vazado para a
utilização da cenografia de Flávio Graff, pois apesar de preencher visualmente o
espaço e dar um sentido de erudição para os donos da casa (que falsamente
querem aparentar ter) com livros e mais livros empilhados formando torres e uma
mesa toda feita com peças de montar, remetendo a estruturas estanques que estão
arraigadas e podem ser desmontadas, parece estranho não haver uma ruptura e um
movimento no cenário também.
Apesar das limitações do
texto e de algum exagero nas atuações, Deus da carnificina alcança fluência. O
público se envolve com a história de forma crescente e é divertimento dos bons.
Há muito tempo eu não me divertia no teatro com uma encenação. Não me chateou,
não consultei o relógio para saber quanto tempo faltava e não virei para o lado
procurando socorro. Dentre tantas opções que se assiste no Festival isso já é
uma grande conquista.
*Rodrigo Marquez é ator e produtor cultural
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