Espectador- Montador
Senhorita Julia por certo
não está entre meus textos preferidos de Strindberg, nem sequer me desperta
grande interesse um texto que para mim expressa misoginia declarada e que
reputo como datado. No entanto, talvez ai resida a força da mise en scène de Júlia por Christiane
Jathahy, uma vez que esta oferece um contraponto à defasagem que sinto em
relação ao original strindberguiano.
Ao longo de sua trajetória
artistica, Jathay vem pesquisando o rompimento e a fricção de fronteiras entre o
teatro e as outras artes, fazendo uso
de diversas mídias tecnológicas na cena teatral. Tal investigação
criativa da diretora carioca, pode se dar por meio da aplicação da técnica
narrativa cinematográfica - como em Corte seco, visto no Porto Alegre em cena
de 2011; ou em forma de teatro no cinema, como foi a experiência de fazer de seu
espetáculo um filme para exibição em salas de cinema. A falta que nos move é
uma obra cinematográfica de Christiane Jatahy na qual os atores eram dirigidos
por mensagem de texto em treze horas ininterruptas de filmagem, chegando ao
ponto do elenco, e posteriormente o público, não saberem mais onde terminava o
roteiro e iniciava a vida.
No espetáculo Júlia a
perspectiva da direção é trazer o cinema para o teatro. E de fato o cinema e a
experiência da filmagem estão lá: a imensidão da tela, o
ilusionismo cinematográfico, a atuação realista, a repetição das tomadas, bem
como as ideias de corte e montagem que sustentam parte da narrativa. Mas o
teatro também está lá, justamente na presença destes elementos que revelam seu
funcionamento para o espectador mediante a convenção da teatralidade,
anti-ilusionista por excelência. Mas afinal, qual o melhor lugar
para confrontarmos estas duas linguagens de modo critico, revelando a tensão
subjacente entre a convivência destes diferentes modos operatórios senão o
espaço do teatro?
Este me parece ser um dos
principais questionamentos propostos por Júlia, uma narrativa
construída a partir de um diálogo entre os diferentes meios implicados. Em
Júlia o palco torna-se um hipermeio capaz de incorporar e
ressignificar seu todo a partir da introdução de outras mídias as quais
referem-se umas as outras sem abrir mão
de suas materialidades. Acho instigante assistir a diferentes momentos de
grande reciprocidade entre os recursos técnico-expressivos, onde uma cena
inicia-se numa imagem pré-gravada, se
continua no palco através da presença atorial ao mesmo tempo em que é simultaneamente ampliada, editada e projetada em tempo real, através das soluções do vídeo
e do uso da ferramenta de manipulação da imagem representada pelo software adotado pela encenação.
O que encanta ao espectador
de Júlia, não é apenas o modo como o espetáculo conjuga de maneira lúdica a
presença física e a virtual, ou ainda o caráter peculiar como a encenação expõe
alguns aparatos da performance no momento de sua ocorrência, fatos que por si
sós, já justificariam a assistência do espetáculo. No entanto, o grande
encantamento de Júlia é que tal
utilização dos meios faz conviver na
cena diferentes tempos, espaços e
pessoas, facultando ao espectador agir como montador, selecionando seu próprio
ponto de vista dos eventos apresentados.
Some-se a isso tudo o fato
da direção e os atores não temerem orbitar as relações inflamadas, as quais os
fazem atuar num regime de
superaquecimento emocional, ao mesmo tempo em que são
invadidos pela câmera que os desnuda o tempo todo. Devido a todas essas
ocorrências criativas, a encenação de Júlia cresce aos olhos do público. Mas sem
dúvida, o destaque da montagem fica por conta da orquestração da encenadora que sabe contar com o melhor de seus talentosos
colaboradores, sintonizando-os com sua proposta de encenação contemporânea,
fazendo com que Júlia - durante e depois de sua exibição -, converse
eloquentemente com o público da atualidade.
*Jacqueline Pinzon é diretora e pesquisadora teatral
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