O eneagrama, para quem ainda não sabe, é uma ferramenta sufi,
criada para o estudo do caráter humano. O termo vem do grego: ennea,
nove, e grammos, figura ou desenho. É
representado, graficamente, na forma de uma espécie de estrela de nove pontas e
tem diversos usos dentro do Sufismo, corrente filosófica, mística e
contemplativa do Islã, onde foi originado. Foi revelado ao ocidente por
Gurdjieff (1866 – 1949), enigmático greco-armênio que foi em busca do
conhecimento de outros “homens notáveis” e teve sua autobiografia transformada
no memorável filme de Peter Brook:
Meetings with remarkable men (1979). Aplicado, hoje, ao estudo do corpomente
humano pelo psiquiatra boliviano Oscar Ichazo (1931) e pelo psiquiatra chileno
Claudio Naranjo (1932). Os aprofundados estudos deste último, que conheço
melhor (por meio dos programas de autoconhecimento da Escola Aberta Vale do
Ser, coordenada pelo terapeuta e professor de Meditação e Artes Contemplativas,
Sergio Veleda, e pela psicóloga Evânia Reichert (autora do livro Infância, a idade sagrada, publicada no
Brasil, em 2008, e recentemente na Espanha), e através da transmissão direta de
Claudio Naranjo, em Brasília, em maio deste ano, dentro da programação da
Escola SAT (SeekersAfterTruth, combinação de termos plasmados por Gurdjieff),
mostram que há nove tipos principais de egos, cada um com três subtipos. Ou
seja, na verdade, “27 tipos” de egos, bem distintos entre si, que constituem
ainda uma infinidade de outras formações egóicas, por associação, entre uns e
outros. Essa grande diversidade de máscaras sociais esconde a “verdadeira
natureza humana”, a essência (ainda em estado puro, antes de proteger-se por
qualquer máscara), o núcleo considerado saudável, incorruptível, de todo o ser
humano. Claro, tudo isso só serve para quem se dispuser a árdua tarefa de
“trabalhar sobre si” (tarefa tão difícil quanto inserir novas criações no
mercado excludente da arte), de ir em busca de sua própria verdade, como
Gurdjieff e outros tantos notáveis, que já nos antecederam. Quase ao final do
filme de Brook, ele encontra o que tanto buscava. O eneagrama pode ser visto,
ali, pintado sobre o piso em que os praticantes do Sufismo executam uma bela e
enigmática coreografia.
Quando suponho que Shakespeare possa ter conhecido e aplicado
esse instrumento, o eneagrama, para construir, em tão curto espaço de tempo,
uma obra tão vasta e impressionante como a sua, com personagens tão diversos
entre si (e que também me atrevo a dizer) com aquele poder (arquetípico) de nos
desnudar e decifrar por inteiro; tento explicar...em verdade, superar minha
perplexidade, diante da genialidade do autor (outros estudiosos, e até mesmo
Freud caiu nessa, tentaram provar a inexistência do bardo, afirmando que sua
obra havia sido escrita por mais de um autor; o que pode ser considerado mais
absurdo do que minhas próprias indagações).
Retornando a Yasmina Reza, volto a afirmar minha total
ignorância a respeito da mesma. A primeira vez que ouvi falar de sua obra
dramática foi no comentário inicial de Mainieri sobre o filme Deus da carnificina. Talvez o
conhecimento da escritora sobre o eneagrama seja tão superficial quanto o meu
(ou muito mais!); talvez ela tenha chegado a esse instrumento a partir do
oráculo contemporâneo, Mr. Google (PhD em qualquer tema); ou, quem sabe, sequer
tenha ouvido falar a respeito. Isso atestaria, no mínimo, seu olhar aguçado
sobre o comportamento humano, o que já seria um grande mérito para qualquer
autor.
Ela conseguiu construir muito bem as quatro personagens de Carnage. A mãe do agressor é uma mulher
insegura (“eu acho”), que se envergonha e sempre pede desculpas pelo
comportamento inadequado do marido, inconveniente e “espaçoso” (com seu, ainda
mais inconveniente, celular); ele é um advogado sem qualquer escrúpulo, mais
preocupado em livrar a barra do cliente mafioso do que em verificar a inocência
ou a culpa de seu próprio filho. Essa esposa e mãe, bem representada, na peça,
por Júlia Lemmertz, a meu ver, se
enquadraria, com perfeição, no eneatipo 4 e seria classificada, ainda, como
pertencente ao subtipo social (tipo e subtipo iguaizinhos aos meus!); quanto a
ele, pai e marido, otimamente caracterizado por Paulo Betti, eu não teria a
menor dúvida em classificar como um tipo 7 de subtipo sexual (aquele “sete de
carteirinha”, como costumamos brincar, em outro meio que costumo frequentar, o
terapêutico; ali, ele seria um eneatipo 7, ainda mais charlatão do que o Mr.
Google!).
Na outra ponta do conflito, os donos da casa onde se passa a ação, os
pais do menino agredido, “transfigurado”, fisicamente, pela outra criança.
Neste lado, a mãe é uma
mulher guiada por rígidos princípios morais, determinada a fazer com que o
mundo gire de acordo com o seu compasso. Foi dela a ideia de armar em sua casa
aquele “civilizado encontro de conciliação” entre as duas famílias; no fundo,
um tribunal, que ela pretende conduzir bem direitinho, não apenas para
condenar, mas também para estabelecer a pena de cada um dos responsáveis pelo
ato bárbaro que vitimou seu indefeso (e inocente) filho. A personagem
apresenta, já no início da peça, um termo de “reparação” a ser assinado pelos
convidados, pais do infrator; texto redigido por essa mãe, em seu particular e
característico perfeccionismo, bem evidenciado na escolha dos termos, muito bem
apropriados aos seus propósitos. Já para o esperto pai-advogado a expressão:
“armado com um bastão”, incluído no texto pela mãe da vítima, deverá ser
substituída por “munido por um bastão” (o jogo linguístico da autora começa a
mostrar o valor de sua obra).
Essa é a faísca que
faz atear o conflito e propagar o incêndio, pretendido pela autora; fogo que
irá consumir as paredes carcomidas de cupim e revelar a estrutura apodrecida,
oculta, naquela situação e no íntimo de seus protagonistas (ou antagonistas,
dependendo do lado em que nós como espectadores possamos nos posicionar. A
nossa posição não é nada cômoda, a partir daí, nossa balança ora oscila para
lá, ora para cá).
A atriz Deborah
Evelyn surpreende, muito positivamente, a quem a conhecia só através da telinha
da tevê, defende com unhas e dentes sua personagem muito bem construída por
ela, e pela autora. Através do prisma do eneagrama, digo sem maiores dúvidas:
essa mãe só pode ser do tipo 1, sexual no subtipo; isso parece estampado em seu
modo de agir e falar (de ser, enfim). Para completar o quarteto de Carnage, o pai da vítima, marido daquela
mulher que parece movida por uma “ira secreta” (e que, mais secretamente ainda,
pensa estar inspirada na “ira divina”), ele, ao contrário, parece um
borra-botas, um fede nem cheira, não se posiciona, acomodado em sua vidinha
medíocre de vendedor de utensílios domésticos inúteis. Um eneatipo 9, do
subtipo preservacional (palavra pouco conhecida, mas muito bem empregada por
Claudio Naranjo, em sua vasta bibliografia sobre o assunto, dedicada a quem
quiser aprofundar-se nesse estudo).
Claro, como em todas as personagens, descritas anteriormente, essa é a
primeira impressão, o verniz, a casca, uma das máscaras, aquela que é possível
identificar mais facilmente quando conhecemos uma nova pessoa. Há muitas outras
camadas, luzes e sombras, virtudes e defeitos até que se possa tomar contato
com a “verdadeira natureza” de cada indivíduo. O ator Orã Figueiredo (conhecido
no teatro, cinema e televisão), tem evidente talento para a comédia,
histrionismo nato, que me fez rir, algumas vezes, dentro do contexto denso
apresentado por Yasmina. Se “a difícil arte de fazer rir” é o principal dom
desse ator (que eu também não conhecia, no palco), também é seu maior defeito, a
sua perdição. Quase também é a perdição do espetáculo dirigido por Emílio de
Mello. Infelizmente, o ator usa e abusa disso, se perde e quase faz naufragar a
encenação, o trabalho de seus colegas e o texto de Yasmina Reza. Ele repete,
insistentemente, ações que se esgotam em si mesmas e que em nada contribuem
para o desenvolvimento do conflito, menos ainda para o aprofundamento do tema.
Parece que a única meta desse ator, em cena, é atrair a atenção para si, roubar
o foco de todos e de tudo, por meio da provocação daquele riso mais fácil,
buscado no pior modelo de comédias, quer no palco ou na telinha. Um tipo de
humor que, ao invés de me divertir, me tira do sério, me incomoda, me irrita. O
pior de tudo é que o excelente trabalho de Júlia (nossa conterrânea, filha de
Lilian e Lineu, saudosos, dedicados e consistentes trabalhadores do palco)
quase se perde também quando ela embarca, vez ou outra, naquela viagem de Orã
(para lugar algum!). Ali, ela até esquece os belos exemplos familiares,
deixando-se contaminar por “esse tipo de coisas”, na minha opinião,
“abomináveis”. Nesse sentido, seu pior momento, ocorre debaixo da mesa.
Enquanto Orã, supera tudo que há de pior no teatro, no interminável e
repetitivo uso de um secador de cabelos.
A meu ver, também contribuíram para o quase naufrágio da encenação e até
do texto, algumas das soluções encontradas pelo próprio diretor. No que
concerne à direção, a pior de todas as opções é a do mecanismo encontrado para
trazer ao palco o vômito da personagem de Júlia. Quanto exagero! Quanta
bobagem! Pastelão! Besteirol (no pior sentido da expressão)! Ali, também, mais
uma vez, a busca do riso fácil, do desejo de “agradar” ao grande público, ao
público televisivo (eu acho). Isso, adicionado à dificuldade que o diretor teve
(outra vez: “eu acho”!) para segurar as rédeas de Orã Figueiredo, me faz
duvidar, muito seriamente de sua “competência” para assumir essa nobre função
(ou será que, após dois anos de temporada, a peça já não interessa ao diretor,
mais preocupado com sua nova montagem, recém-estreada, e ele deixa esse texto
de Yasmina entregue às traças; aos atores para que o pintem, o bordem e
remendem, ao seu bel prazer?).
Sim, os figurinos funcionam, a luz também. Por outro lado, não consigo
entender o que cenógrafo e diretor pretendiam ao colocar pilhas de livros sobre
o palco do Theatro São Pedro. Homenagear o município de Morro Reuter, no Porto Alegre em Cena? Nem como pensam
que o público, ainda mais “o grande público”(!), iria decifrar “aquela
metáfora” da enorme mesa de jantar feita de “Lego” (é! Isso mesmo, feita de
pecinhas multicoloridas daquele jogo infantil! Em seu tamanho real!).
Decifrar?! Nem mesmo enxergar! Só me dei conta do que era aquilo, muito depois,
ao ver algumas fotos do cenário, nos jornais. Teriam eles a intenção de dar
alguns toques de modernidade ao texto de Reza? Dar um visual pós-moderno,
pós-dramático, conceitual, à sua encenação? Quiçá, para agradar também a
crítica especializada?! Será que o único objetivo desta montagem carioca, feita
por diretor e atores globais, era esse? Caçar níqueis? Vil metal? Espero muito
que não! Embora algumas dessas suposições incomodem muito ao meu olfato (tenho
nariz e narinas muito grandes, às vezes, sinto como se fossem bem maiores que
meu cérebro e até que meu conhecimento).
Mestre Flávio, neste ponto, discordo com veemência (típica de um ego 4):
Reza não me parece tão “rasa”, assim; já alguns equívocos na abordagem de seu
texto, apresentados na encenação de Emilio de Mello, estes sim, me parecem
muito superficiais e até inconsequentes.
(continua)
*Mauricio Guzinski é ator, diretor e professor de teatro
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