O
19º Porto Alegre Em Cena começou para mim exatamente com a peça sobre a qual
fui convidada a escrever: Humores que matan, montagem de Central Park West, de
Woody Allen, dirigida por Mario Morgan, que integra a Mostra de Teatro Contemporâneo Uruguaio
promovida por esta edição do festival.
Uma locução no início do espetáculo
informa que o texto foi escrito logo após sua polêmica separação da atriz Mia
Farrow no início dos anos 90 - um trunfo da divulgação, que sugere que a trama
permeada por traições, hipocrisias e abandono foi alimentada por fatos
biográficos do ilustre nova iorquino. Lançada a isca, o texto em off se encerra
com uma citação de Allen que, em síntese, aponta a mentira como válvula de
escape para as agruras da vida.
No palco, porém, a cenografia exposta
desde a entrada do público pouco parece indicar que haverá espaço para o
descompromisso com a realidade e a verdade que norteia as relações e desejos
dos personagens. Pelo contrário. Em cores quentes, das quais o vermelho é
predominante, a muito mobiliada sala de estar em que se situa a ação, com seu
sofá de três lugares ocupando o centro da cena, num primeiro momento remete a uma comédia de costumes enlatada, impressão
que acaba reforçada pelo jazz standard que marca o início da encenação.
Evidentemente, a escolha da trilha
sonora é uma referência à Woody Allen, cujo estilo se mostra logo nas primeiras
linhas de diálogo entre Phyllis (Laura Sanchez) e Carol (Gabriela Iribarren). E
que estilo! Estabelecida a situação, deflagrado o conflito, o desenrolar da
ação traz à cena o melhor do autor: o humor arguto e ácido, a narrativa repleta
de revezes e imprevistos, um rol de personagens “neuróticos e nervosos”, que
inclui um depressivo alter ego seu, todos obcecados pela busca do prazer sexual
e/ou a devastadora certeza da morte, além de Freud, a psicanálise e a filosofia
existencialista disfarçadas em piadas.
Diante disso, o cenário literal e
ilustrativo como os figurinos, a luz quase inteiramente realista e a trilha
sonora escassa parecem revelar a opção por privilegiar a palavra falada. Talvez
por estarmos diante de um teatro tradicionalmente de texto, talvez por
reverência a seu renomado autor, ou simplesmente por sua construção ser aguda,
dinâmica, e elaborada de tal forma que suscita o riso, a imaginação e a
reflexão no espectador já por ouvi-lo. E aqui vale destacar a pontual
adaptação/atualização feitas por Fernando Masllorens e Federico González del
Pino.
Mas, sem dúvida, se a obra de Allen é
valorizada na encenação de Morgan é por meio e mérito do elenco, composto por
Franklin Rodriguez, Leonardo Lorenzo e Ana Laura Romano, além das duas atrizes
mencionadas anteriormente.
Coesos e equilibrados em suas atuações,
os cinco atores acompanham com fluidez o ritmo intenso e crescente que o
diretor confere à peça. Suas figuras em cena são construídas e reveladas ora em
rompantes, ora com sutilezas, evidenciando contrastes interessantes e
conduzindo ao cômico desmascaramento social e psicológico que ocorrem aos cinco
personagens.
O resultado são bem humorados 90
minutos que, independente de conhecimento
prévio sobre os pormenores da biografia de Woody Allen ou seu estilo
literário, lança um olhar crítico e terrivelmente lúcido sobre temas universais
que passam pela infidelidade nas relações e o jogo de aparências, mas vão além.
Humores que matan abre espaço para o
descompromisso com a verdade, sim, e reflete sobre aquelas engenhosas
construções ilusórias em torno das quais, de uma forma ou de outra, todos baseamos
projetos, afetos ou a própria identidade.
*Tainah Dadda é diretora teatral
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