domingo, 16 de setembro de 2012

Cão que morre não ladra por Jeferson Cabral



            O jogo com a morte
Ao entrar no teatro do SESC, o público é convidado a vivenciar um dia no cotidiano de uma família aparentemente normal. Em Cão que ladra não morre, somos alocados em uma sala de estar que desvendará uma série de conflitos cíclicos, em que a cada novo instante a lei da ação e reação torna-se presente. O efeito bola de neve é visível na trama, pois as fatalidades permeiam e desestabilizam a lógica dos acontecimentos corriqueiros dentro de um lar.
A companhia de Chapitô (Portugal) tem 12 anos de atuação como coletivo teatral e aposta suas fichas na poética da comédia como fio condutor das perplexidades vividas, por nós, seres humanos em nossa realidade social. O grupo investe desde sua criação, no ano de 1996, no trabalho físico do ator para suscitar e alimentar a imaginação do público.
O cenário constituía-se de uma mesa com grandes gavetas de onde saíam os elementos de cena. Existiam mais três cadeiras e um criado mudo onde se localizava a vitrola que compunha musicalmente a cena. Não foi necessário mais nada, pois todo o poder da peça estava centrado na corporeidade dos atores e na forma lúdica que se deu a narrativa diante de nossos olhos.       
A história que nos foi apresentada retratava a aceitação da perda, porque é através da morte do cão da casa que a trama começa a se desenvolver. Os pais tentam de todas as formas não revelar ao seu filho o fim da vida de seu bicho de estimação. Nessas tentativas eram revelados desenhos de cenas incríveis, que de forma eficaz reproduziam uma brincadeira de esconde-esconde. Nesse jogo foram utilizados os compartimentos da mesa como refúgio para o corpo do cão. A agilidade com que as cenas aconteciam nos trazia um sentimento de plena espera pelo que estaria por vir daqueles corpos dançantes em cena. Em determinado momento o filho descobre o corpo de seu cão e passa a tratá-lo como um ser ainda vivente, situação que permeia com as demais perdas que acontecerão na peça.
A morte ronda outra vez a família. Ao tentar lidar com esse problema novamente, outras situações extremas acabam acontecendo. A mãe da família acaba perdendo a vida após um simples tropeção, cena que causou grande impacto na plateia. Após essa morte vemos o pai tentando não mostrar ao filho a morte da mãe, mas sua tentativa não possuiu êxito e os espectadores são presenteados com cenas que beiram o absurdo, pois a negação da perda da mãe é o mote para cenas hilárias de humor ácido. Assim, somos apresentados a uma situação limite: uma discussão leva o filho a assassinar o pai. E logo vemos um menino vivendo com dois cadáveres, na verdade três, pois o cão ainda está ali.  Nesse momento concretiza-se uma atmosfera de sonho, pois os mortos voltam à vida e brincam afetuosamente com o filho. Esses dois mundos são constituídos através da iluminação, um tom claro para a ambientação da sala de estar e um jogo de luz azul para a atmosfera de sonho, de algo imaterial. 
O treinamento corporal dos atores fica muito visível nas cenas em que a ação de imobilidade foi exercida pelos mortos. Fica evidente o trabalho realizado entre o relaxamento muscular e os jogos de marionetes, pois os corpos dos atores transformavam-se em objetos de interação com a própria ação surreal que era encenada.
Na relação familiar que presenciamos por meio dessa obra teatral, vi a incomunicabilidade de pessoas próximas que apesar de dividirem o mesmo espaço não dividem o mesmo tempo. Penso que é esse o cerne do humor negro desse espetáculo, porque a morte é tratada como um jogo lúdico.
Ao sair de Cão que morre não ladra, encontrei-me com uma sensação de encantamento e questionei perante meu pensamento: como uma história de enredo demasiadamente simples encheu de magia o palco? A percepção que se encontra latente em meu imaginário é de que essa obra viaja entre o real e o fantástico de uma maneira sincera e surpreendente. 
*Jeferson Cabral é graduando no Departamento de Arte Dramática da UFRGS  

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