Este 19º Porto Alegre em Cena tem uma característica que o distingue das anteriores edições, e que agradaria em muito ao inesquecível Sérgio Silva, morto no último dia 15 de agosto. Estão na grade do festival dois espetáculos baseados em grandes textos dramáticos (Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht e Júlia, baseado em Senhorita Júlia de August Strindberg). O que une esses dois espetáculos e o cineasta, ator e professor Sérgio Roberto Silva (1945-2012) é o fato de que Sérgio adaptou para o cinema essas obras: Anahy de las Misiones (1997), baseado em Brecht, e Noite de São João (2003), baseado em Strindberg.
Anahy de las Misiones é considerado, pela maioria dos críticos, como o melhor longa metragem gaúcho já feito. Sérgio, cujas histórias sobre suas tias "alemoas" nos faziam rir até às lágrimas durante suas aulas de dramaturgia no Departamento de Arte Dramática da UFRGS, admirava e entendia o germanismo, e tinha Bertolt Brecht como um ídolo. (Aliás, é preciso dizer que Sérgio tinha um posicionamento político esquerdista, que o fez, em sua juventude, durante o regime militar brasileiro, sentir-se atraído pelo teatro brechtiano, de orientação marxista). Quando foi buscar inspiração para realizar seu primeiro longa, Sérgio amparou-se na pungente e atemporal história da mãe que, em meio à guerra, vale-se dos objetos retirados aos mortos nos campos de batalha para manter a família. Mas Sérgio Silva não localizou seu Anahy de las Misiones na Guerra dos 30 anos europeia: aproveitou a nossa Guerra dos Farrapos, na primeira metade do século XIX, como pano de fundo do drama de Anahy (a nossa Anna Fierling), que vê, um a um, seus filhos serem arrebatados pelo monstro da guerra.
Já em Noite de São João, é o texto de Strindberg adaptado para uma fazenda do interior gáucho, em 1905, tendo como trama principal a relação entre Júlia, a filha de um estancieiro, e o capataz João, por quem ela se interessa. Uma trama paralela mostrava um bando de contrabandistas e suas ações. Nas longas madrugadas de filmagem, durante todo o mês de janeiro de 2002 (detalhe: o filme passava-se um um inverno, e nossos figurinos eram todos de lã), fiz amizades e me aproximei da Margarida Leoni Peixoto, que também atuava no filme, e com quem me casei, naquele verão. Estamos juntos, eu e ela, até hoje, e costumo dizer que Sérgio foi nosso padrinho de casamento, porque nos colocou no mesmo set, e, dadas as características do processo de filmagem, que é longo e deixa os atores seguidamente à espera, possibilitou nossa aproximação durante os intervalos entre os "corta!" e os "ação!".
Tive a felicidade de participar como ator dos dois últimos filmes de Sérgio, Noite de São João (que levou os kikitos de melhor trilha sonora, melhor fotografia, melhor atriz coadjuvante (Dira Paes) e melhor ator (Marcelo Serrado), em Gramado), e o ainda inédito Quase um tango..., que também venceu em Gramado os kikitos de melhor atriz (Viviane Pasmanter) e melhor roteiro, para o próprio Sérgio Silva. Também tive o privilégio de ser aluno do Sérgio no DAD, e sem dúvida foi um dos melhores professores com quem travei contato. Um homem que amava profundamente o cinema e o teatro, e que admirava nos atores a capacidade de fazer parecer de verdade o que é uma grande mentira, seja pelo filtro de uma câmera, seja sobre as tábuas de um palco.
*Marcelo Adams é ator e professor da graduação em Teatro: Licenciatura da UERGS
3 comentários:
Já havia falado do Sergio aqui em outro comentário, mas volto porque acho importante essas lembranças. Muitas pessoas têm me perguntado se não vão fazer uma amostra dos filmes dele. Digo que acredito que sim, que, em breve, vamos ter essa oportunidade. Assim como estou convencida de que não é à-toa que a plateia do Festival tenha recebido tão bem esses dois espetáculos citados aqui. Esse professor, diretor, cineasta não só sabia das coisas mas ensinava de um jeito inesquecível. E acharia graça de ser considerado "casamenteiro", provavelmente dizendo: "Lá vem esse menino Marcelo Adams com essas bobaaaagens!
O Sérgio ocultava, sob um exterior muitas vezes de humor ferino, um grande coração. Não estou estou tão certo assim, Helena, de que ele não se sentisse feliz por ter colocado duas pessoas no caminho uma da outra. Ele acreditava no amor, e lembro de como ficava empolgado ao falar de "Romeu e Julieta", a grande tragédia de Shakespeare, que estudávamos em suas aulas. Ele até poderia achar "bobagem", mas certamente sorria com o título de padrinho que nós lhe outorgávamos, à sua revelia.
Ah, mas ele dizia isso exatamente como tu comentaste: ocultando uma profunda satisfação! Também não duvido de que ele ficasse bem feliz. Aliás, só vi ele usar a palavra "bobagem" para coisas que o deixavam, no fundo, bem orgulhoso! E ainda bem que ele não se zangaria comigo por estar "colocando palavras na sua boca".:)
Postar um comentário