sábado, 15 de setembro de 2012

Deus da carnificina por Clóvis Massa

A arte de viver em sociedade em Deus da carnificina

     Encenar uma peça centrada no conflito entre as personagens, com diálogos afinados e desenvolvimento preciso da ação, é um desafio para um encenador atual. Os textos de Yasmina Reza, filha de mãe húngara e pai russo-iraniano, são excessivamente discursivos. No entanto, diferentemente de seus colegas da recente dramaturgia francesa que acentuam o caráter épico em suas narrativas dramáticas, suas obras apresentam enfoque e linguagem realista que escamoteia qualquer teatralidade, em situações em que as personagens detonam um impressionante embate de forças e afirmam seu posicionamento através da argumentação. Não é à toa que a autora também é cineasta, roteirista e tem participado como atriz, nos últimos anos, em produções de filmes franceses.
     Associada à recente transposição para o cinema, realizada por Roman Polanski, as várias montagens teatrais estrangeiras, produzidas com artistas que atuam tanto no teatro, cinema e televisão, demonstram a inserção que a obra tem tido desde a sua estreia mundial, obtendo simultaneamente grande repercussão de público e crítica. Deus da carnificina teve sua estreia no Schauspielhaus de Zurique, em 8 de dezembro de 2006, e logo após foi levada à cena no Teatro Antoine de Paris, dirigida pela própria Yasmina Reza, com nada mais nada menos do que Isabelle Huppert no papel de Verônica. A primeira versão em inglês (adaptada por Christopher Hampton) estreou em 25 de março de 2008, com Ralph Fiennes no elenco, sob a direção de Matthew Warchus, que também a dirigiu na Broadway, com a atuação de Jeff Daniels, entre outros. Na Espanha, o espetáculo teve a participação de Maribel Verdú, consagrada atriz do cinema e da televisão espanholas. Em Porto Alegre, é a segunda vez que a peça participa da programação do festival: a primeira montagem sul-americana de Un dios salvage, dirigida pelo uruguaio Mário Morgan, foi apresentada no Teatro Renascença, em 2009, e contava com César Troncoso, ator do filme O banheiro do Papa, em seu elenco, num espetáculo bastante limitado, em termos de produção. Em Buenos Aires, estreou sob a direção de Javier Daulte, dramaturgo, cineasta e diretor de teatro, com o expressivo Gabriel Goity no papel de Miguel, ator conhecido entre nós por sua participação no filme Um namorado para minha esposa.
     Deus da carnificina se baseia na forma dramática, no teatro de representação que afirma o conflito dos seres que compõem um universo cheio de contradições. As personagens são colocadas num único local, uma impecável sala de estar (espaço tão estimado pelo drama burguês!), em sucessiva progressão da ação até o enfraquecimento da diplomacia e o esmoronamento das aparências, terminando em total descontrole das relações sociais. A obra de Yasmina Reza desarticula o que se costuma pensar a respeito do teatro contemporâneo porque expressa como nenhuma outra as questões do nosso tempo por meio da sagacidade dos diálogos, resultando na mais pura diversão desalienante, que até provoca risos e espasmos no público, mas que nos permite ver o que está por trás das relações sociais ao expor cruamente as hipocrisias humanas quando pessoas adultas, que se acreditam evoluídas, divergem sobre um ato de violência entre seus filhos e, na busca pela origem do problema, arraigados em seus princípios éticos, procuram se eximir de suas responsabilidades.
     O desafio do diretor, no caso de Deus da carnificina, senão em qualquer montagem no que se pode chamar de uma encenação tipicamente contemporânea, é correr o risco de transpor o que está escrito no texto dramático como se isso bastasse, sem uma concepção cênica que dialogue com o texto e o coloque em tensão. O programa da montagem portenha, que fez temporada há poucos anos numa das salas do sempre lotado - e também por isso - agradável Paseo La Plaza, da avenida Corrientes, em Buenos Aires, trazia na capa, e em algumas fotos internas, a imagem dos quatro personagens embolados, no ápice de um ataque de nervos, puxando roupas e cabelos uns dos outros, ao mesmo tempo que tentavam se desvencilhar como podiam da situação, ainda que não houvesse nada próximo a isso em nenhuma cena do espetáculo, que apenas transpunha as ações descritas no texto. Na montagem apresentada no Theatro São Pedro, nessa edição do festival, a primeira parte do espetáculo mostra a organização dos últimos elementos que compõem a sala de estar, antes do casal  receber os pais da criança que golpeou seu filho. É interessante ver que a direção não opta por deixar claro que isso seja apenas uma contraregragem: ali vemos tanto o ator se deslocando num cenário cheio de livros empilhados (os pilares culturais da sociedade) como também identificamos o dono da casa, um atacadista de utensílios domésticos, trazer sua bengala, preparar os livros, enfim, maquiar sua existência, constituindo um local que aparente e literalmente represente a sala de estar como espaço do autocontrole, fruto do processo educacional e civilizatório. Com essa presença indeterminada, de preparação, que faz o público antever na atriz que ajeita as flores sobre a mesa a mulher evoluída que crê no poder pacifista, mas se mostra durante o conflito mais como uma temperamental, é bem provável que o público se dê conta a partir desse momento de suas próprias facetas entre ser e parecer, contraste que é acentuado pela música em francês que acompanha o prólogo, um sonoro rap que pede “un peu de prudence”.
     Um pouco menos de prudência viria bem a calhar, no entanto, nas concretizações da obra de Yasmina Reza, cuja escrita, justamente por ser realista, parece não se bastar mais, num primeiro momento, a esse tratamento. Enquanto o necessário desrespeito ao texto não vem, a precisa direção de Emílio de Mello (visto como ator há dois anos, em In on It) aproveita ao máximo a excelência dramatúrgica da obra, sabendo valorizar a ironia proposta pela autora e o entendimento dessa verdadeira arte de viver em sociedade. 
     Ainda que a mesa excessivamente comprida do cenário de Flávio Graff, formada por milhares de coloridas e diferentes peças de montar, funcione mais na ideia do que prática, visto que o desmoronamento das aparências poderia até ser fisicalizado por sua eventual desestruturação, ao final, inclusive se as colunas de livros também desmoronassem; que se sinta falta do fio do telefone de disco, azul retrô, usado pelo dono da casa para receber as ligações da mãe doente; que o ator Orã Figueiredo (de O que diz Moleiro), na segunda metade da trama, quando seu personagem está exaltado, grite sem necessidade, e que tenha predileção pelo histrionismo em alguns momentos, interferindo na noção de conjunto; afora esses breves senões, a transposição da peça resulta em espetáculo da mais alta qualidade. Julia Lemmertz e Orã Figueiredo haviam se apresentado juntos em edição anterior do festival, com o excelente Molly Sweeney – Um rastro de luz. O excelente desempenho de Julia Lemmertz, Orã Figueiredo, Deborah Evelyn e Paulo Betti em Deus da carnificina é, sem dúvida, um encontro notável do público gaúcho com uma maneira de fazer teatro que ultrapassa definições e formas fixas, na qual os méritos vão muito além dos preconceitos arraigados.
 
*Clóvis Massa é professor do Departamento de Arte Dramática da UFRGS

Um comentário:

Julio Appel disse...

Bela crítica Clóvis Massa. Parabéns !