A
arte de viver em
sociedade em Deus
da carnificina
Encenar uma
peça centrada no conflito
entre as personagens,
com diálogos afinados e
desenvolvimento preciso da
ação, é um desafio
para um encenador
atual. Os textos de Yasmina
Reza, filha de mãe húngara e pai russo-iraniano, são
excessivamente discursivos. No entanto, diferentemente de seus colegas da
recente dramaturgia francesa que acentuam o caráter épico em suas narrativas
dramáticas, suas obras apresentam enfoque e linguagem realista que escamoteia
qualquer teatralidade, em situações em que as personagens detonam um
impressionante embate de forças e afirmam seu posicionamento através da
argumentação. Não é à toa que a autora também é cineasta, roteirista e tem
participado como atriz, nos últimos anos, em produções de filmes franceses.
Associada à recente transposição para o
cinema, realizada por Roman Polanski, as várias montagens
teatrais estrangeiras, produzidas
com artistas que atuam
tanto no teatro, cinema e televisão,
demonstram a inserção
que a obra tem
tido desde a sua
estreia mundial, obtendo
simultaneamente grande repercussão
de público e crítica.
Deus da carnificina teve sua estreia no Schauspielhaus de
Zurique, em 8 de dezembro de 2006, e logo após foi levada à cena no Teatro
Antoine de Paris, dirigida pela própria Yasmina Reza, com nada mais nada menos
do que Isabelle Huppert no papel de Verônica. A primeira versão em inglês
(adaptada por Christopher Hampton) estreou em 25 de março de 2008, com Ralph
Fiennes no elenco, sob a direção de Matthew Warchus, que também a dirigiu na
Broadway, com a atuação de Jeff Daniels, entre outros. Na Espanha, o espetáculo teve a participação de Maribel
Verdú, consagrada atriz do cinema e da televisão espanholas. Em Porto Alegre, é
a segunda vez que a peça participa da programação do festival: a primeira
montagem sul-americana de Un dios salvage, dirigida pelo uruguaio Mário
Morgan, foi apresentada no Teatro Renascença, em 2009, e contava com César
Troncoso, ator do filme O banheiro do Papa, em seu elenco, num
espetáculo bastante limitado, em termos de produção. Em Buenos Aires, estreou
sob a direção de Javier Daulte, dramaturgo, cineasta e diretor de teatro, com o
expressivo Gabriel Goity no papel de Miguel, ator conhecido entre nós por sua participação
no filme Um namorado para minha esposa.
Deus da carnificina
se baseia na forma dramática, no teatro de representação que afirma o conflito
dos seres que compõem um universo cheio de contradições. As personagens são
colocadas num único local, uma impecável sala de estar (espaço tão estimado
pelo drama burguês!), em sucessiva progressão da ação até o enfraquecimento da
diplomacia e o esmoronamento das aparências, terminando em total descontrole
das relações sociais. A obra de Yasmina Reza desarticula o que se costuma
pensar a respeito do teatro contemporâneo porque expressa como nenhuma outra as
questões do nosso tempo por meio da sagacidade dos diálogos, resultando na mais
pura diversão desalienante, que até provoca risos e espasmos no público, mas
que nos permite ver o que está por trás das relações sociais ao expor cruamente
as hipocrisias humanas quando pessoas adultas, que se acreditam evoluídas,
divergem sobre um ato de violência entre seus filhos e, na busca pela origem do
problema, arraigados em seus princípios éticos, procuram se eximir de suas
responsabilidades.
O desafio
do diretor, no caso
de Deus da
carnificina, senão em
qualquer montagem no que se pode
chamar de uma encenação tipicamente contemporânea,
é correr o risco
de transpor o que
está escrito no texto
dramático como se
isso bastasse, sem uma
concepção cênica que
dialogue com o
texto e o coloque
em tensão. O programa da montagem portenha, que
fez temporada há poucos anos numa das salas do sempre lotado - e também por isso
- agradável Paseo La Plaza, da avenida Corrientes, em Buenos Aires, trazia na
capa, e em algumas fotos internas, a imagem dos quatro personagens embolados,
no ápice de um ataque de nervos, puxando roupas e cabelos uns dos outros, ao
mesmo tempo que tentavam se desvencilhar como podiam da situação, ainda que não
houvesse nada próximo a isso em nenhuma cena do espetáculo, que apenas
transpunha as ações descritas no texto. Na montagem apresentada no Theatro São
Pedro, nessa edição do festival, a primeira parte do espetáculo mostra a
organização dos últimos elementos que compõem a sala de estar, antes do
casal receber os pais da criança que
golpeou seu filho. É interessante ver que a direção não opta por deixar claro que
isso seja apenas uma contraregragem: ali vemos tanto o ator se deslocando num
cenário cheio de livros empilhados (os pilares culturais da sociedade) como
também identificamos o dono da casa, um atacadista de utensílios domésticos,
trazer sua bengala, preparar os livros, enfim, maquiar sua existência,
constituindo um local que aparente e literalmente represente a sala de estar
como espaço do autocontrole, fruto do processo educacional e civilizatório. Com
essa presença indeterminada, de preparação, que faz o público antever na atriz
que ajeita as flores sobre a mesa a mulher evoluída que crê no poder pacifista,
mas se mostra durante o conflito mais como uma temperamental, é bem provável
que o público se dê conta a partir desse momento de suas próprias facetas entre
ser e parecer, contraste que é acentuado pela música em francês que acompanha o
prólogo, um sonoro rap que pede “un peu de prudence”.
Um pouco menos de prudência viria bem a
calhar, no entanto, nas concretizações da obra de Yasmina Reza, cuja escrita,
justamente por ser realista, parece não se bastar mais, num primeiro momento, a
esse tratamento. Enquanto o necessário desrespeito ao texto não vem, a precisa
direção de Emílio de Mello (visto como ator há dois anos, em In on It)
aproveita ao máximo a excelência dramatúrgica da obra, sabendo valorizar a
ironia proposta pela autora e o entendimento dessa verdadeira arte de viver em
sociedade.
Ainda que a mesa excessivamente comprida
do cenário de Flávio Graff, formada por milhares de coloridas e diferentes
peças de montar, funcione mais na ideia do que prática, visto que o
desmoronamento das aparências poderia até ser fisicalizado por sua eventual
desestruturação, ao final, inclusive se as colunas de livros também
desmoronassem; que se sinta falta do fio do telefone de disco, azul retrô,
usado pelo dono da casa para receber as ligações da mãe doente; que o ator Orã
Figueiredo (de O que diz Moleiro), na segunda metade da trama, quando
seu personagem está exaltado, grite sem necessidade, e que tenha predileção
pelo histrionismo em alguns momentos, interferindo na noção de conjunto; afora
esses breves senões, a transposição da peça resulta em espetáculo da mais alta
qualidade. Julia Lemmertz e Orã Figueiredo haviam se apresentado juntos em
edição anterior do festival, com o excelente Molly Sweeney – Um rastro de
luz. O excelente desempenho de Julia Lemmertz, Orã Figueiredo,
Deborah Evelyn e Paulo Betti em Deus da carnificina é, sem dúvida, um
encontro notável do público gaúcho com uma maneira de fazer teatro que
ultrapassa definições e formas fixas, na qual os méritos vão muito além dos
preconceitos arraigados.
*Clóvis Massa é professor do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
Um comentário:
Bela crítica Clóvis Massa. Parabéns !
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