Dar voz às sombras
Desde a entrada no espaço em que se
realizará a encenação, presenciamos a relação estabelecida entre esses seres
humanos, que resistem à vida da maneira que podem. Indivíduos que ao nosso
primeiro olhar exalam certa marginalidade, mas quando a história desse bando de
seres começa a ser contada vemos que a
alma humana é complexa em qualquer classe social.
Mário
Bortolotto, renomado dramaturgo paranaense e que também atua nos campos da
direção e atuação teatral, nos apresenta na peça Nossa vida não vale um Chevrolet o desenrolar torpe de vidas
repletas de incertezas e tragédias. Sentimos ressoar ao longe as vozes desses
personagens que são excluídos da sociabilidade padrão de nosso meio social e
levam suas vidas nos emaranhados caminhos do submundo.
A
ambientação deste universo de relações humanas voltadas para o crime foi construído
no Centro Cenotécnico, que por sua energia e arquitetura nos transportam a um
ambiente sufocante condizente com a proposta da encenação. O cenário nos remete
ao interior de uma oficina mecânica constituindo um espaço único de encenação
com diversos focos de atuação, pequenos universos que em determinados momentos
dialogam. Os elementos espalhados pelo espaço são uma reinvenção de artefatos
metálicos, que se transformam em objetos de cena. Esses elementos juntamente
com os figurinos formam uma estilização urbana de um ambiente soturno, que
esconde as aspirações secretas de cada personagem.
A
história narra a trajetória de irmãos após a morte de seu pai. Esse é o mote
que revela a desestrutura familiar em que se encontram, pois sua mãe também
vive uma vida longe dos filhos. A maneira que essa família encontrou para
sobreviver foi a criação de uma quadrilha de roubo de carros, atividade que o
irmão mais novo Slide (Duda Cardoso) não consegue exercer com o mesmo empenho e
acaba preso. Uma trama paralela ocorre com os irmãos, eles conhecem e se
relacionam com a mesma mulher. Essa ramificação da trama confere uma atmosfera
poética à peça, porque os desencontros e a busca por preencher o vazio da
existência é o ideal de vida de Silvia (Morgana Kretzmann), personagem que vive
com suas perdas e novas possibilidades de ser feliz e acaba sua trajetória no
mesmo estado em que iniciou; e os irmãos são peças desse quebra-cabeça da
solidão. Existe outro núcleo na história composto pelos personagens Suruba (Guilherme Zanella), Love (Plínio Marcos) e Guto (Carlos Azevedo), esses
personagens exercem sua função dentro do meio social em que vivem, como o
agenciador de lutas, o gogo boy e o viciado em cocaína e perpassam o caminho
trilhado pelos irmãos no decorrer da história.
A direção de
Adriane Mottola é repleta de inventividade. A encenação obteve um ritmo que me
prendera a atenção até seu final eletrizante, em que vemos a família se
desestruturando em um embate de laços de sangue, que é o único elo desses
irmãos que acabam destroçados por estarem sempre sendo alimentados pelo
sentimento de falta. A montagem nos preenche de energia e reflexão
sobre o olhar que damos a esta realidade, pois basta olharmos para algumas
esquinas e as presenciaremos.
Em Nossa vida vão vale um Chevrolet, vemos
a força do teatro gaúcho em uma produção rica em detalhes e excelência
artística.
*Jeferson Cabral é graduando no Departamento de Arte Dramática da UFRGS
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