O Carisma do Mal em
Sargento Getúlio
Este texto não é uma crítica teatral. Trata-se
da intercessão de um tema (o personagem Getúlio) como ativador de diálogo e
reflexão sobre a Arte e o Mal. O pequeno ensaio tem duas plataformas que, se o
leitor tiver paciência, tentarei examinar:
A primeira diz respeito à arte do teatro.
O que se vê se presencia; o que se ouve se traduz. Viagem múltipla numa rede
com vértices de retransmissão para dentro do oco das cabeças dos espectadores.
Cabeças ocas? Se não forem ocas, serão maciças como a cabeça do personagem
Getúlio - um obcecado. Cabeça oca não é referência pejorativa, pois sendo vazia
de ideias fixas e preconceituosas, é aberta à crítica, numa constante renovação
de conteúdos. Se o espectador tiver cabeça assim, percebe que se trata de um
disparate ter empatia por um assassino (que mata covardemente uma mulher em
adiantada gravidez, por uma suposta traição). Ou, da mesma forma, vê que é uma
contradição sentir empatia pelo homem que revive, prazerosamente, o ato de
esmagar, com uma pedra, a cabeça de um oponente (que cumpria ordens, como ele)
e, depois, decapitá-lo, pelo fato principal desse sujeito tê-lo chamado de
corno. Entretanto, esse disparate acontece. Sente-se compaixão pelo personagem.
Admiramos sua coragem (macheza). Torcemos para que saia vencedor nas emboscadas
que a tropa do governo lhe faz, e para que tenha muitos filhos todos machos,
como seria de seu agrado, para povoar o nordeste de ferrabrases. A estética vai
torcendo a ética, pois, afinal, tudo não passa de ficção e de uma aula de
antropologia ao vivo. No Nordeste mítico – um autêntico cabra da peste. E nós,
gaúchos, não ficamos para trás em valentia, não é mesmo? Estamos em plena
semana farroupilha, em que se vê o culto de uma história inventada para nos dar
identidade. “Se me pisar no pala, meu
revólver fala...”, alardeia a nossa tradição. Assim, nos apaixonamos pelo
bandido, mas ressalvando nosso senso crítico de que é um bandido criado pela arte
de Carlos Betão, um ator magistral, merecidamente vencedor do prêmio Braskem
2011. Entregamo-nos ao prazer de ver um
esqueleto de Rural Willis, numa paisagem de fog, servindo de cenário, e
acreditamos estar numa estrada de pó na caatinga. Esse ator, esse cenário e
essa luz denotam uma excelente direção - Gil Vicente Tavares - e uma equipe
baiana de heróis do teatro, vencendo mais uma batalha na guerra contra a insensibilidade
e a barbárie. O nome da equipe - Teatro Nu - está muito coerente nesta encenação,
pois expõe a alma humana em sua busca pela entidade - o personagem Getúlio se define
numa frase: “Querem que eu desapareça? Mas, quem desaparece são os outros, eu
estou sempre aqui”. Sargento Getúlio - Prêmio
Braskem de melhor espetáculo 2011. Parabéns ao estado da Bahia, terra de
poetas, músicos e, como vimos com Sargento Getúlio, de bom teatro.
A
segunda plataforma diz respeito mais à sociologia. Quem é Getúlio? Um sociopata
com a característica onipotência deste quadro? Um maníaco? Um esquizofrênico -
com seu típico mundo interior polifônico? Pelo entrecho, o personagem é capanga
de um político numa disputa partidária, e seu destino é ser assassinado, assim
que se tornar inconveniente para seus mandantes. O enredo do romance de Ubaldo
Ribeiro, e da fiel versão teatral, é um monólogo relatando vivamente a
resistência que esse personagem impõe a seu destino. Não quer ser descartado.
Não quer ser um nada, um ninguém. É a luta do ego para se impor contra a
paisagem hostil. Há um momento, antes de seu fim, que Getúlio recita em alta
voz, como numa oração apotropaica, todas as artes de matança em que ele se
afirma o melhor, numa clara tentativa de camuflar seu medo. Pistoleiros, como sargento
Getúlio, foram usados por partidos políticos de norte a sul do Brasil. Aqui, na
serra gaúcha tivemos o caso do bandido Paco Sanchez, que servia aos
republicanos, obrigando cidadãos a votarem nos asseclas de Borges de Medeiros,
até que foi tocaiado e metralhado por gente deste mesmo poderoso chefão. Apesar
do vocabulário emprestado pela poesia de seu criador - João Ubaldo -, percebe-se
que Getúlio é sujeito tosco, obnubilado, insensível aos querer que não seja o seu. Assim acontece com os cangaceiros e outros
bandidos que, no imaginário de gênios como Graciliano, Guimarães, Érico
Veríssimo e outros, tornam-se bons falantes de um vernáculo melodioso e até
filosófico. É a arte colorindo a crueza da realidade. Os Getúlios e outros
malvados têm também sua dose de bondade, e talvez nem tenham culpa de seus
crimes, já que, devido às injustiças sociais, não se adaptaram ao sistema
vigente. Porém o problema do Mal não é tão simples, assim, que possa ser
explicado apenas pelo social. Há que se ouvir as vítimas, ou, ao menos,
imaginar seus olhos arregalados na hora em que a peixeira do machão assovia.
*Camilo de Lélis é encenador
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