Existe um longo caminho
vazio entre o texto e o espetáculo. Mais ainda quando entre ambos está a
diferença de objetivos, quando um deseja reportar e o outro, dramatizar. Mujeres al límite, o livro, nasceu a
partir do olhar de uma jornalista, Mónica Bottero, sobre cinco histórias reais
e revela, portanto, a intenção de tornar público aquilo que facilmente chamamos
de “dramas”, em vez de simplesmente casos, fatos, notícias.
Mas cinco dramas nem
sempre cabem em um palco, principalmente quando são intensos como as cinco
narrativas que Omar Varela transformou em espetáculo. Agora já não são
mulheres, são madres. E, mãe, que palavra é essa, carregada de um só sentido em
vários: o limite do feminino – seu início, seu meio e seu fim? O drama de uma
mãe é sempre o de um povo inteiro. No entanto, em meio ao silêncio da plateia,
não pude deixar de sentir que aquelas vozes femininas falavam muito mais
diretamente a mim – mãe de Ingrid e de Pedro – e a todas aquelas outras, mães e
avós, que por vezes levaram as mãos aos olhos, buscaram as de seus
companheiros, do que ao espectador masculino. Juntas, suspiramos em uníssono a
cada vez que aquelas cinco mães voltavam a sentar-se diante de nós. Ao final do
espetáculo, pude comprovar, observando e ouvindo, esta minha sensação. Catarse
é isso.
Busquei um fio condutor
entre elas, que não a maternidade e o conflito com os filhos, e só encontrei
um: todas elas lutam sozinhas. Mesmo Rosa e Alexandra, as únicas cujas
histórias trazem a presença de um companheiro, são mães solitárias que, a
despeito dos pais, assumem para si o fardo. Em ambas, essa carga é um filho
incapacitado para a vida, Mercedes, a filha com paralisia cerebral de Alexandra,
e Leandro, o filho psicótico de Rosa. Se em Alexandra a paz foi alcançada com o
esforço para fazer Mercedes vencer a vida, em Rosa o drama é trágico: ela só
alcança a paz – estado de espírito que ela própria confirma – levando-o à morte.
“Eu sou um ser humano”, declara ela, como se ser mãe fosse justamente deixar de
ser humana. Seres humanos têm direito de errar, mães, não. “Assessina” é uma
palavra forte, e ela cobre a boca ao dizê-la.
No palco, as lacunas
mudam de configuração: transformam-se em espaço vazio, em que apenas cinco
cadeiras em semicírculo representam as sobras de vidas esgotadas pelo
sofrimento. Para cada uma delas a cadeira é uma porta, o lugar de onde se
erguem para a chamada ao público. Falar, contar, narrar-se, é tudo que lhes
resta, ultrapassados todos os limites da maternidade. Para Rocío, a cadeira é la
plaza, lugar onde ela protagoniza sua luta contra as drogas – a pasta base –
para salvar o filho, trajetória que se transforma em bandeira social, em voz
que se levanta contra o descaso do governo diante do sistema de tráfico. Contraditória
é que, a partir daí, ela não serve mais ao teatro: sua face deixa de ser
personagem para se transformar em figura pública, real demais para papéis
fictícios.
Também se fazem contra
instituições os dramas de María e Valentina, ambas lutando pela guarda dos
filhos. Suas cadeiras estão em tribunais, diante de juízes, advogados e fiscais
de fronteira corruptos. A história de Valentina é aquela em que o bater de
martelo é mais justo, embora provisório – a eterna vigília que é papel de toda mãe. Enganada
pelo marido, que dela se divorcia sem a necessidade de sua assinatura, no
Panamá, ela tem de partir em fuga com os filhos, para fazer justiça no Uruguai.
Valentina parece repetir a sina da mãe, também abandonada pelo marido – confuso
por “una rúbia de 20 anõs”. Mães que ainda são mulheres.
A história de María nos
parece tão absurda que nos comove por sua ingenuidade e sua simplicidade, e é
só quando ela se indigna, erguendo a voz para reclamar da injustiça diante de
sua condição humilde, é que também sentimos raiva. Raiva, e principalmente das figuras
masculinas: do marido que a agride, molesta e abandona, do advogado que a
engana, do “hombre”, que toma sua filha e a registra como sua – e de uma “madre
desconocida”. Como pode? – ela questiona. Não sabemos, e suspiramos, cinco
vezes suspiramos.
O espetáculo de Omar
Varela é textual, discurso que se faz entre a realidade e sua proclamação por
narradores que sequer alcançam o status de personagens. Entre as cadeiras delas
e as nossas, o público, o cenário é o mesmo, o vazio – que se transforma em angústia,
pela repetição, pelo constante sentar e erguer-se da cadeira, como se as
histórias não tivessem fim. Entre reportar e dramatizar, resta que se
transformam em algo único: anunciar dramas. As falas, que começam serenas,
vão-se tornando dramáticas conforme elas se reportam ao passado e vivenciam,
novamente, suas histórias. São vozes distintas: a serenidade da consciência
tranquila de Alexandra, a indignação do orgulho ferido de Valentina, a voz
política de Rocío, a Madre de La Plaza, a humildade dolorida de María, a
angústia sufocada e chocante de Rosa – vozes que Nídia Telles, Jenny Galván,
Gabriela Iribarren, Marisa Bentancur e Estela Medina souberam distinguir.
A pronúncia
entrecortada de Estela Medina, que no início quase me incomodou, transformou-se
em representação trágica – como se ela fosse ali o mito sobre o qual todas as
outras gravitassem. Para mim, ela tomou o palco, suas palavras, como se ora
cuspidas ora soluçadas, rasgando o peito para sair – o dela e o meu. Estela era
Rosa inteira, o tempo todo tentando afastar as lembranças que era obrigada a
revelar, quase que eu dizia “chega, chega”, enquanto ela balançava a cabeça,
engolindo a cena do filho morto diante de seus olhos – os nossos, ali no palco,
no chão. Entre culpa e dever, o trágico – que não precisa de cenário, nem
figurino, nem música mais. Desnecessária também a música no início, melhor
seria o vazio inteiro, para que as histórias – reportagens – pudessem ser
construídas como o foram. Talvez o espetáculo projetasse começar como um programa
de auditório, aqueles aonde as pessoas vão para contar seus dramas, aqueles que
as novelas têm mostrado ao fim de cada capítulo, para amarrar a ficção ao real
– tornar públicas as tragédias particulares. Isso realmente aconteceu para mim,
principalmente em relação a María e Rosa: tomei para mim suas dores. Teatro também
é isso.
*Ana Cláudia Munari é doutora em Letras
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