quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Madres al límite por Ana Cláudia Munari



Existe um longo caminho vazio entre o texto e o espetáculo. Mais ainda quando entre ambos está a diferença de objetivos, quando um deseja reportar e o outro, dramatizar. Mujeres al límite, o livro, nasceu a partir do olhar de uma jornalista, Mónica Bottero, sobre cinco histórias reais e revela, portanto, a intenção de tornar público aquilo que facilmente chamamos de “dramas”, em vez de simplesmente casos, fatos, notícias.
Mas cinco dramas nem sempre cabem em um palco, principalmente quando são intensos como as cinco narrativas que Omar Varela transformou em espetáculo. Agora já não são mulheres, são madres. E, mãe, que palavra é essa, carregada de um só sentido em vários: o limite do feminino – seu início, seu meio e seu fim? O drama de uma mãe é sempre o de um povo inteiro. No entanto, em meio ao silêncio da plateia, não pude deixar de sentir que aquelas vozes femininas falavam muito mais diretamente a mim – mãe de Ingrid e de Pedro – e a todas aquelas outras, mães e avós, que por vezes levaram as mãos aos olhos, buscaram as de seus companheiros, do que ao espectador masculino. Juntas, suspiramos em uníssono a cada vez que aquelas cinco mães voltavam a sentar-se diante de nós. Ao final do espetáculo, pude comprovar, observando e ouvindo, esta minha sensação. Catarse é isso.
Busquei um fio condutor entre elas, que não a maternidade e o conflito com os filhos, e só encontrei um: todas elas lutam sozinhas. Mesmo Rosa e Alexandra, as únicas cujas histórias trazem a presença de um companheiro, são mães solitárias que, a despeito dos pais, assumem para si o fardo. Em ambas, essa carga é um filho incapacitado para a vida, Mercedes, a filha com paralisia cerebral de Alexandra, e Leandro, o filho psicótico de Rosa. Se em Alexandra a paz foi alcançada com o esforço para fazer Mercedes vencer a vida, em Rosa o drama é trágico: ela só alcança a paz – estado de espírito que ela própria confirma – levando-o à morte. “Eu sou um ser humano”, declara ela, como se ser mãe fosse justamente deixar de ser humana. Seres humanos têm direito de errar, mães, não. “Assessina” é uma palavra forte, e ela cobre a boca ao dizê-la.
No palco, as lacunas mudam de configuração: transformam-se em espaço vazio, em que apenas cinco cadeiras em semicírculo representam as sobras de vidas esgotadas pelo sofrimento. Para cada uma delas a cadeira é uma porta, o lugar de onde se erguem para a chamada ao público. Falar, contar, narrar-se, é tudo que lhes resta, ultrapassados todos os limites da maternidade. Para Rocío, a cadeira é la plaza, lugar onde ela protagoniza sua luta contra as drogas – a pasta base – para salvar o filho, trajetória que se transforma em bandeira social, em voz que se levanta contra o descaso do governo diante do sistema de tráfico. Contraditória é que, a partir daí, ela não serve mais ao teatro: sua face deixa de ser personagem para se transformar em figura pública, real demais para papéis fictícios.
Também se fazem contra instituições os dramas de María e Valentina, ambas lutando pela guarda dos filhos. Suas cadeiras estão em tribunais, diante de juízes, advogados e fiscais de fronteira corruptos. A história de Valentina é aquela em que o bater de martelo é mais justo, embora provisório  – a eterna vigília que é papel de toda mãe. Enganada pelo marido, que dela se divorcia sem a necessidade de sua assinatura, no Panamá, ela tem de partir em fuga com os filhos, para fazer justiça no Uruguai. Valentina parece repetir a sina da mãe, também abandonada pelo marido – confuso por “una rúbia de 20 anõs”. Mães que ainda são mulheres.
A história de María nos parece tão absurda que nos comove por sua ingenuidade e sua simplicidade, e é só quando ela se indigna, erguendo a voz para reclamar da injustiça diante de sua condição humilde, é que também sentimos raiva. Raiva, e principalmente das figuras masculinas: do marido que a agride, molesta e abandona, do advogado que a engana, do “hombre”, que toma sua filha e a registra como sua – e de uma “madre desconocida”. Como pode? – ela questiona. Não sabemos, e suspiramos, cinco vezes suspiramos.
O espetáculo de Omar Varela é textual, discurso que se faz entre a realidade e sua proclamação por narradores que sequer alcançam o status de personagens. Entre as cadeiras delas e as nossas, o público, o cenário é o mesmo, o vazio – que se transforma em angústia, pela repetição, pelo constante sentar e erguer-se da cadeira, como se as histórias não tivessem fim. Entre reportar e dramatizar, resta que se transformam em algo único: anunciar dramas. As falas, que começam serenas, vão-se tornando dramáticas conforme elas se reportam ao passado e vivenciam, novamente, suas histórias. São vozes distintas: a serenidade da consciência tranquila de Alexandra, a indignação do orgulho ferido de Valentina, a voz política de Rocío, a Madre de La Plaza, a humildade dolorida de María, a angústia sufocada e chocante de Rosa – vozes que Nídia Telles, Jenny Galván, Gabriela Iribarren, Marisa Bentancur e Estela Medina souberam distinguir.
A pronúncia entrecortada de Estela Medina, que no início quase me incomodou, transformou-se em representação trágica – como se ela fosse ali o mito sobre o qual todas as outras gravitassem. Para mim, ela tomou o palco, suas palavras, como se ora cuspidas ora soluçadas, rasgando o peito para sair – o dela e o meu. Estela era Rosa inteira, o tempo todo tentando afastar as lembranças que era obrigada a revelar, quase que eu dizia “chega, chega”, enquanto ela balançava a cabeça, engolindo a cena do filho morto diante de seus olhos – os nossos, ali no palco, no chão. Entre culpa e dever, o trágico – que não precisa de cenário, nem figurino, nem música mais. Desnecessária também a música no início, melhor seria o vazio inteiro, para que as histórias – reportagens – pudessem ser construídas como o foram. Talvez o espetáculo projetasse começar como um programa de auditório, aqueles aonde as pessoas vão para contar seus dramas, aqueles que as novelas têm mostrado ao fim de cada capítulo, para amarrar a ficção ao real – tornar públicas as tragédias particulares. Isso realmente aconteceu para mim, principalmente em relação a María e Rosa: tomei para mim suas dores. Teatro também é isso.
*Ana Cláudia Munari é doutora em Letras

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