O espetáculo Júlia, adaptado e
dirigido por Christiane Jatahy, é parte integrante da pesquisa que a diretora
vem desenvolvendo nos últimos anos e que se destaca pela utilização de recursos
cinematográficos na cena teatral. Da mesma forma, ela emprega o teatro como
fonte para sua pesquisa em cinema, como foi o caso de A falta que nos move, espetáculo que anos depois virou filme. Em Júlia,
dentre os procedimentos utilizados, chama a atenção do público o diálogo entre
o que acontece em cena, em tempo presente – e que também é filmado, editado e projetado
simultaneamente – e os fragmentos de vídeo previamente gravados. A cena
presentifica e atualiza o filme, colocando-o em interação com os atores em
tempo real, diante dos olhos atentos do espectador que precisa fazer escolhas e
juntar pedaços. A peça começa com Julia criança anteriormente filmada e
projetada na tela, e termina com Julia adolescente, em cena no corpo de Julia
(Bernat), a atriz, que responde neste limiar entre o que é ela, a jovem
intérprete, e o que é Julia, a jovem personagem que comete um erro para ela fatal
– ter uma relação sexual com o empregado da família – e que agora precisa
morrer.
A dramaturgia adaptada da obra Senhorita Júlia, de August Strindberg,
foi pensada pela encenadora antes do processo de ensaios começar, estando já
definido o que seria previamente filmado e o que seria construído em cena,
assim como os cortes e as reescrituras necessárias. Jatahy optou por atualizar
a obra, situando-a em nossa época, no Brasil. Para ela, isto devolveria o
sentido original ressignificando o texto, que aborda uma relação impossível
entre um criado e a filha do patrão, a finais do século XIX, na Suécia. Assim,
Jean ganha nome brasileiro e vira o empregado negro que é seduzido pela mocinha
branca. Jatahy considera as diferenças raciais e sociais geradoras de uma
impossibilidade ainda nos dias de hoje, e é sob esta ótica que o espetáculo e
sua atualização dramatúrgica se constroem, com todos os riscos que isto
acarreta: contemporâneo e convincente para alguns, frágil e artificial para
outros.
Pensado originalmente para um
espaço pequeno e não tradicional, a obra se adapta perfeitamente ao palco
italiano do Renascença, criando o vazio de seus protagonistas que se deslocam
neste grande espaço vazio que o palco gerou. Os atores sustentam a atuação
realista que a encenação propõe, mantendo-se sempre entre o grande e teatral do
palco e o pequeno e sutil que a câmera demanda. Assim, podemos escolher ver os
seus olhos projetados na tela ou o seu corpo inteiro presentificado no palco.
Em algumas cenas, que acontecem dentro do imponente e bem elaborado cenário, o
espectador fica como voyeur que só sabe
o que está acontecendo através do olhar da câmara, que transmite aquilo que a
cenografia está ocultando. Cada um vê o espetáculo que seu lugar na plateia e
seu olhar lhe permitem ver. Assim, Jatahy propõe um jogo onde as relações, tanto
humanas como espaciais, revelam-se pouco a pouco. É uma montagem que busca
recontextualizar o texto a partir da adaptação dramatúrgica e cênica, onde
cinema e teatro se misturam, onde a precisão da produção e da mise-en-scène se destacam para que o
espectador possa escolher.
*Camila Bauer é encenadora e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS
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