O simples gesto de continuar
O palco, um grande tablado circular,
está inclinado, caindo em direção à plateia. Um estrondo agudo e seco anuncia o
aparecimento repentino de um pequeno galho florido no centro. É o início da
história, que se passa na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), na Alemanha. Dois
soldados abordam a carroça de mercadorias de Anna Fierling, uma vendedora
ambulante, mãe de três filhos, dois rapazes e uma moça. Os dois filhos puxam a
carroça quando o diálogo começa. Dinheiro, comércio, guerra, interesses
pessoais: Anna, a Mãe Coragem, tira o sustento de sua família da guerra que
agora levará seus filhos. A amiga guerra também será sua inimiga. As relações,
sempre circulares, exibem sua profundidade quando vistas a partir de sua
dubiedade: tudo o que é bom é também ruim.
Não é exagero dizer que Carmen-Maja
Antoni está esplêndida no papel título. Ao mesmo tempo terrível ao regatear a
vida de um filho, ela é doce ao dizer não ao calor e ao conforto de uma
estalagem pela companhia da filha muda. Dito na complexidade de suas
consoantes, o alemão se apresenta fortemente no contexto geral de cada palavra
junto com todas as delicadezas no dizer de cada sílaba. Ler as legendas, em
muitos momentos, é desperdiçar os ouvidos dos diálogos jogados com tanto
merecimento. Anna Graenzer, que interpreta a filha, representa bem o papel
contraponto de Coragem. A sensibilidade é muda, dependente, com cicatrizes. Só
quem a tem, a entende. Martin Seifert, que interpreta o capelão, enche de
nuances as suas aparições, exibindo com gradativa significação a transformação
do seu caráter. Quanto mais pecador ele se torna, mais santo ele fica,
movimentos que poucos dramaturgos conseguiram expressar na história do teatro.
Em suma, fundado em 1949, o Berliner Ensemble, pela primeira vez no Brasil,
traz um elenco de protagonistas e de coadjuvantes afinados, com interpretações
potentes e cujos destaques vão desde simples tons até Antoni na grandiosidade
de sua anti-heroína.
Claus Peymann, célebre desde
Kasper, de Peter Handke (1968), confere excelente ritmo à narrativa. Dos
giros do olhar à movimentação da carroça, nenhuma marca acontece sem
orquestração. O desafino na interpretação das canções funcionam como meias
rasgadas, freios de mãos emperrados e maquiagem carregada: nada é
despretensioso. O famoso distanciamento brechtiano, uma reflexão para poucos,
pode ser visto superficialmente no tom farsesco: cada elemento está por algo
além dele, um algo que certamente significa mais do que apenas uma parte da
história.
Com blackouts longos, a iluminação
(não creditada) é positivamente fria, dura, específica. Em tons escuros, o
figurino de Maria-Elena Amos privilegia os camponeses e faz destoar os
personagens militares estranhamente. A direção musical de Rainer Böhm faz ver a
importância das canções como recurso diegético, sem felizmente caracterizar a
peça como um musical. O cenário de Frank Hänig, que inclui a carroça da versão
original, é simples, apontando para o essencial: o jogo retórico do discurso
dramático.
Anna Coragem termina empurrando a
própria carroça como Zé do Burro carrega a sua cruz, pagando sua promessa. A
humanidade que destaca o homem e lhe a dá a vida, também é a sua morte.
Liberdade e condenação andam lado a lado na sublime decisão de continuar.
*Rodrigo Monteiro escreve no blog Crítica Teatral (www.teatrorj.blogspot.com.br)
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