quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Marcelo Adams #12: As sete caras da verdade

Foto: Mariano Czarnobai / PMPA

As sete caras da verdade


É tão bom poder afirmar que um dos melhores espetáculos do 17º Porto Alegre Em Cena é gaúcho! Em meio a verdadeiros ícones do teatro mundial, a ópera cômica As sete caras da verdade, de Nico Nicolaiewsky e de Fernando Jankzura, com direção cênica do próprio Nico assistido pela mulher, Márcia do Canto, é uma excelente surpresa.

Praticamente só se veem acertos em cena. A começar pela simplicidade da encenação, sem nenhum elemento cenográfico a não ser a pequena plataforma onde se postam os integrantes do coro. De resto, apenas adereços (também mínimos: um revólver, um livro,...), indispensáveis apenas porque são parte integrante da trama criada por Nico. Trama? Bem, essa é uma das brincadeiras da ópera em questão.

Não há, a rigor, trama nenhuma. Quem está acostumado às intrincadas fábulas de um Rossini ou Verdi, vai se surpreender com como é possível não contar quase nada em 50 minutos. E é justamente esse tão pouco a dizer que torna As sete caras da verdade tão estimulante como obra de arte.

Há um fiapo de história: Alencar é visitado por Rodolfo, em sua casa. Rodolfo mata-o a tiros, mas, antes de expirar, revela-lhe um segredo "ao pé do ouvido". Há, ainda, o Narrador e a mulher de Alencar. Trocas de identidade e outras mortes resumem muito bem o que se vê em cena. É só. Achou pouco? Sim, é pouco, mas o suficiente para ser antológico. O nonsense domina a cena. A metalinguagem é A linguagem desta ópera, que bebe claramente nas HQs (As sete caras... já foi publicada nesse formato, inclusive). Referências visuais ao filme Dick Tracy, dirigido e estrelado por Warren Beatty, em 1990, são muito adequadas e dão o tom caricaturesco esperado (há até perucas estilo Lego).

Os figurinos de Antônio Rabadan são engraçados e muito dentro da concepção. O coro, formado por integrantes do Coral Expresso 25, se sai bem, apesar de uma certa "dureza" cênica, nada que um pouco mais de prática de palco não resolva com o tempo. Houve algumas imprecisões na operação da iluminação criada por Marga Ferreira, mas nada catastrófico e que não se acerte com o prosseguimento (pena que, no Theatro São Pedro, por enquanto, não se apresentarão).

O destaque maior nesse tipo de ópera de bolso, com recursos reduzidos, geralmente são os solistas. Neste caso, Ricardo Barpp, como o Narrador, tem figura cênica muito boa, além de cantar magistralmente. Carlos Careqa, como Alencar, é divertido, mas mostra pouco, porque sua participação é pequena. Adriana Deffenti é, sem dúvida, e inversamente proporcional à sua participação de poucos minutos, o grande destaque da ópera. Nada menos que antológica é sua participação como a mulher de Alencar: excelente cantora e comediante impagável, faz render absurdamente sua personagem, apenas com o timing perfeito.

Me perdoa, Nico, mas acho que tua ambição foi demasiada: não bastasse escrever e dirigir a ópera, ainda quis interpretar o papel de Rodolfo, o matador. Essa é a maior fragilidade do espetáculo, infelizmente. O contraste com as vozes perfeitas de Adriana e Ricardo pesa negativamente para Nico. Sua voz, por vezes, é encoberta pela pequena orquestra, denunciando a técnica imperfeita do comediante experiente. Há também indecisões no ataque junto à música, perceptíveis, quando deveriam ser escamoteados. Talvez o nervosismo explique em parte esses problemas, mas o fato é que Nico poderia ter escalado um tenor com maior potência vocal. E digo isso considerando a breve experiência que tenho como encenador de ópera (sim, meus amigos, em 2005, dirigi a ópera verista I pagliacci, de Ruggero Leoncavallo, na PUCRS, com coro de 80 integrantes, seis solistas e seis bailarinos; uma experiência e tanto).

O trabalho musical do maestro Fernando Cordela é bastante eficiente, com uma orquestra afinada e antenada. Em resumo, é um feito notável o de Nico Nicolaiewsky: satiriza, ao mesmo tempo, a ópera romântica e a ópera moderna. Explico: o entrecho melodramático típico da gran opera, com crimes e segredos a serem revelados, convive com a inspiração de uma ópera moderna como Einstein on the beach, criada pelo genial Philip Glass, com encenação de Bob Wilson, em 1976. A repetição de linhas melódicas e de motivos musicais, típica de Glass, encontra reflexo em Nico. O que o compositor gáucho faz, no entanto, é reverter a intenção original de Glass, utilizando o recurso da repetição como motivo cômico. E consegue atingir plenamente seu intento.

Parabéns entusiasmados ao Nico e toda sua equipe! Porto Alegre está orgulhosa, tenho certeza.


*

Marcelo Adams é ator, diretor teatral e dramaturgo. Graduado em Teatro- Interpretação Teatral e em Direção Teatral, pela UFRGS. Mestre em Letras pela PUCRS. Fundador da Cia. de Teatro ao Quadrado, sediada em Porto Alegre. Participou de dezenas de espetáculos como ator e diretor. Destacam-se Goela abaixo, O homem e a mancha (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2006), Burgueses pequenos, Édipo, O médico à força (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2008), Bodas de sangue e Mães & Sogras. Estreará no próximo dia 15 de outubro, no Teatro de Arena de Porto Alegre, o espetáculo A lição, de Eugène Ionesco, nova produção da Cia. de Teatro ao Quadrado. Autor do blog http://marceloadams.blogspot.com/

2 comentários:

Helena Mello disse...

Como é bom quando a gente lê algo escrito por outra pessoa, mas que é exatamente aquilo que gostaríamos de escrever. Com a diferença de que nunca cheguei nem perto de dirigir uma ópera, o resto deste texto eu assinaria. Uma das primeiras coisas que pensei quando saí do espetáculo é que não é um espetáculo daqui, mas do mundo. No nível dos tão aguardados Bob Wilson e Peter Brook. A concepção é genial. Os acadêmicos poderiam escrever várias teses sobre a sua metalinguagem. Também senti a fragilidade da participação do Nico. Isso, porém, não tira uma das primeiras exposições do ranking dos melhores.

Aninha disse...

Se me permitem apenas uma "defesa" ao grupo Expresso 25, a "dureza cênica" foi proposital da direção do espetáculo.

Se conferirem o trabalho do grupo em seus espetáculos próprios, verão uma proposta bem diferente.

Isso foi também um convite!

:)

Abraços!