segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Beth Néspoli #7: Por tu padre


Foto: Mariano Czarnobai

Por tu padre

Ontem vi o espetáculo argentino Por tu padre, texto de Dib Carneiro Neto, cuja montagem brasileira, intitulada Adivinhe quem vem para rezar, fora protagonizada por Paulo Autran. Saí emocionada do teatro e não apenas pela minha fruição ou envolvimento pessoal. Minha comoção veio especialmente por um fator externo, pela observação da intensa relação estabelecida entre o palco e a plateia. Pode não se repetir nas noites seguintes, mas, no sábado à noite, foi um acontecimento a forma como o público acompanhou o espetáculo. Em alguns momentos, o teatro era tomado por silêncios densos, quase palpáveis. Era visível a forma como os espectadores acompanhavam o embate entre os dois personagens. Num dado momento, um homem à minha frente emitiu um som involuntário em sobressalto ao ouvir determinada “revelação”. Numa outra cena, o personagem vivido por Adrián Navarro dá um tapa no rosto de seu pai, interpretado por Federico Luppi. Está aí um ato de forte carga dramática. Na vida real, um tapa no rosto de um pai é ato impensável, provocaria dor quase insuportável. Cena difícil, muito facilmente pode resultar falsa, ou exageradamente melodramática, ou agressiva a ponto de diluir o sentido do afeto ferido. Foi realizada na medida pelos intérpretes. E o diretor não negligenciou o peso do ato. Após essa ação, os dois atores ficam imobilizados e em silêncio durante quase um minuto, tempo muito longo em teatro. Ontem, no Theatro São Pedro, nessa cena, o público ficou igualmente imóvel, respiração suspensa, junto com eles.

Alguns podem alegar que Por tu padre é uma obra dramática baseada em conflito psicológico e, portanto, de estética muito familiar ao grande público, o que facilitaria a comunicação. Não é bem assim. Claro que sua linguagem não provoca estranhamento, mas o simples reconhecimento está longe de garantir tal fruição. O que ocorreu ali no Theatro São Pedro só pode ser prova da qualidade de tal obra.

Por tu padre é um drama “aristotélico”, unidades de tempo, lugar e ação respeitadas. Tudo se dá pouco antes de uma missa de corpo presente, no embate entre um rapaz (Navarro) e dois personagens vividos por um mesmo ator mais velho (Luppi). Uma chuva forte supostamente provoca o atraso dos fiéis e o rapaz recebe a visita de um ex-sócio de seu pai, alguém que marcou de forma indelével sua infância. Os perfis psicológicos dos personagens são construídos com precisa coerência e revelados aos poucos por meio de diálogos muito bem encadeados, que conseguem provocar risos mesmo abrindo feridas. A trama se desenvolve a partir da forma como os personagens desvelam fatos do passado ali, naquele momento, premidos sob a forte emoção da perda. Ocorre que as imagens desveladas pelo abrir de véus surpreendem, nunca são como esperávamos, nunca são aquilo que nos acenaram pouco antes. Diálogos voltam em espiral e as mesmas palavras ganham novos sentidos a cada nova informação posta em jogo.

Eu vi a montagem protagonizada por Paulo Autran mais de uma vez e, de início, foi impossível não comparar. Mas depois de alguns minutos o espetáculo argentino ganhou o seu espaço na minha atenção. De saída, gostei demais da postura física de Navarro que, a meu ver, traduziu muito bem no seu corpo, na sua atitude, o caráter acovardado desse homem que nunca conseguiu crescer, um homem-menino, preso a um fato ocorrido nos seus doze anos de idade. No seu corpo, ele revelava sua incapacidade (infantil) de sustentar suas palavras agressivas. Falava recuando como a criança que teme a força física e moral do adulto.

Em toda a primeira parte do espetáculo, eu gostara muito do Luppi, firme, figura forte, com os pés plantados no chão, em boa oposição ao garoto frágil, choroso, acovardado. Mas quando ele retorna, como pai, eu estranhei o fato dele não diferenciar fisicamente os dois personagens, algo que Paulo Autran realizou com brilho. Depois, fiquei pensando que talvez não fosse mesmo necessário tal virtuosismo. Afinal, há na peça uma atmosfera de realismo fantástico, não há uma explicação clara, e nem precisa haver, para a duplicidade de papeis. Pode ser que seus personagens estejam presentes apenas na imaginação do rapaz.

Ambos, sócio e pai, representam o masculino para esse rapaz. Não por acaso um masculino cindido em sua mente, que não consegue conciliar ou decidir entre retidão oprimida e leviandade sedutora. Essa cisão, que impede sua integridade, ele parece querer resolver nesse dia. Trata-se de um duplo, da uma cisão do mesmo, por isso é possível tal opção do Luppi: não é preciso necessariamente que haja uma diferença forte entre os dois.

Eu ainda prefiro essa diferença bem marcada, uma vez que a semelhança está dada pelo fato de ser o mesmo ator. Mas isso é pessoal, tem a ver com a referência anterior, com o que vi do Paulo Autran. A relação estabelecida por essa montagem com o público é a prova de que estou tratando aqui de um detalhe sem importância.

Gostei também da forma como saiu do “verbo” para a cena a informação, que deveria ser dada pelo padre ao fim, de que o rapaz estava há horas na igreja. Em vez de palavras, a imagem do ator lendo na penumbra nos faz refletir sobre o que realmente se passou ali, ao fim de tudo.

O único senão, o que realmente incomoda no espetáculo é a cenografia, de visualidade pesada, artificial, antiga. Opção difícil de compreender.


*Beth Néspoli é jornalista e crítica teatral. Atuou durante 15 anos, entre 1995 e 2010, como repórter especializada em teatro e crítica no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo. Desligou-se da imprensa diária no início do ano para uma temporada de estudos. Atualmente é mestranda no curso de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

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