Foto: Ivo Gonçalves
Cuestión de princípios
Roberto Cossa entende de dramaturgia como poucos. Seus diálogos, sua carpintaria teatral, suas personagens, suas histórias são profundamente carregadas de conhecimento da alma humana, mas também de seus pensamentos e ideias sobre este mundo que habitamos. Ele não é um simples cronista de época nos apresentando fatos, lutas, dissabores. Neste caso, ele nos propõe uma leitura mais complexa de uma época que ficou marcada com “certo e errado”, “esquerda e direita”, “revolução e ditadura”.
A ideia do Cossa é mergulhar nas personagens e questioná-las de frente e de perfil. Isso cria uma armadilha para qualquer diretor: se a leitura é linear, as personagens são arquetípicas, básicas, óbvias. O sindicalista, militante histórico, que descuida a família pela causa, e a filha que já adulta, mas mal resolvida, cobra e questiona do pai uma vida de abandonos e carências. À primeira vista, Roberto Cossa entra na variante dos anos noventa sobre o fim da história e tudo o que fizemos estava errado (revolução, lutas pelas liberdades, sindicalismo, etc.). Quantas vezes tivemos que ouvir que, depois da queda do muro de Berlin, o capitalismo tinha mostrado que era o verdadeiro e único caminho, que o neo-liberalismo era a saída para nossas ambições e que qualquer ideia socialista, sindicalista ou ligeiramente revolucionária era demodèe? Pois é, a filha em questão defende o tempo todo que o pai estava errado, que lutou e sangrou por nada.
Numa leitura mais apurada, e isso o texto permite, podemos ver que todas as ideias podem ser questionadas, devem ser questionadas, são questionadas, mas não se pode abandonar os princípios, a essência, o próprio ser. Uma Cuestión de princípios. Estou sendo simplista, porque o tema é infindável.
Patrícia Yosi, a diretora, tem uma característica que me agrada muito: deixa o texto em paz e se dedica aos atores (como diria Antunes: “detesto decoradores de palco”). Yosi, nesse ponto, conta com um ator (Walter Reyno) de porte, de fôlego, com cheiro de teatro, encarnando o desequilíbrio e a obstinação, a fragilidade e o determinismo, e permitindo à diretora sair da armadilha de uma história que anda no fio da navalha entre o revisionismo e a frustração histórica. Com esse ator, a peça sai da armadilha da leitura linear e sombria e conseguimos entender o questionamento que nos permite chegar ao cerne, a questão de prinípios. O problema é que o palco fica desequilibrado com a figura da filha (Laura Sánchez). Ela entra na primeira cena e nos já sabemos de seus ódios, frustrações e magoas. Não nos permite desentranhar a personagem; ela já vem pronta, acabada, definitiva. E é ali que a peça entra na dúvida sobre o quê realmente está sendo dito: de quem é esse ponto de vista? Do autor? Da direção? Da atriz? Como quem assina a montagem é a Patrícia, vai para a conta dela, (sabendo que tem questões que são do autor e da construção de seus personagens). E, nesse sentido, nem a diretora nem a atriz conseguiram passar impunes por essa personagem (dificílima). A atriz parece “telegrafar” emoções, as alterações de intensidade dramática parecem estar aguardando o momento marcado para aparecer. Não estou dizendo que a atriz seja fraca ou ruim, muito ao contrário. Laura é dona de uma presença cênica forte, experiente e com momentos de brilho. Mas é nela que a história se torna linear, sem opções, com leitura única.
Apesar de tudo, a peça nos apresenta o que tem sido boa característica do teatro rioplatense: um bom texto e bons atores são o suficiente para permitir-nos assistir a teatro, a bom teatro.
(É sempre assim quando quem fala é um argentino e portenho: quando é bom é rioplatense, quando é ruim é uruguaio)
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Nestor Monasterio é diretor teatral argentino radicado há muito no Rio Grando do Sul.
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