A máquina de abraçar
Vivemos a época do individualismo. A cada instante, nos fechamos mais e mais dentro de nosso casulo e nos tornamos seres ególatras, incapazes de perceber o outro. Incapazes de um gesto bondoso ou de uma manifestação simples de afeto. Incapazes de estabelecer relação com próximo. Esquecemos das regras básicas de convivência: do bom dia ao motorista de ônibus, do sorriso despretensioso para um amigo etc. Esquecemo-nos das trivialidades. Da simplicidade das relações do cotidiano. Todo e qualquer ato, seja de afeição ou de gentileza, parece estar diante de um obstáculo intransponível. Tamanha é a nossa falta de tato para lidar com as coisas simples. É sobre isso que trata A máquina de abraçar, texto do espanhol José Sanchis Sinisterra, em tradução de Eric Nepomuceno. A atriz Malu Galli, em sua estréia na direção, nos propicia um espetáculo dos mais sinceros e impertinentes desse 17º Poa Em Cena. Sincero por mostrar, na medida exata, uma história simples e que, de regra geral, foge ao que vem se fazendo aqui em Porto Alegre nos últimos tempos: é um espetáculo de texto. Verborrágico. Delicioso. Prova maior de que não é necessário dar piruetas no palco ou executar compassos de dança para se ter um belo espetáculo. Se o texto é bom e os atores melhores ainda, nada mais é necessário. Nenhuma partitura extravagante ou uma cadencia de imagens são necessárias. N’A máquina de abraçar, a complexidade está no texto e nas relações que se estabelecem entre ele e as personagens; Impertinente por parte do autor, por ter no autismo, doença incurável e de origem desconhecida, a mola propulsora da cena. A grande ferida que instiga cada espectador todo o tempo.
Tudo o que se refere ao concreto, nesse espetáculo, esbanja simplicidade: o cenário é composto por duas mesas e duas cadeiras, dispostas uma de cada lado do palco. Na parte superior, à direita, uma samambaia. Um telão (desnecessário) ao fundo. A iluminação também é simples. Quanto à sonoridade, pontuam-se por vezes sons desconfortáveis a um burburinho de vozes que por vezes pontua o espetáculo.
Sobre ele, trata-se de um congresso psicanalítico. Na cena, uma terapeuta e sua paciente autista. Ao iniciar, ouve-se um grande burburinho de vozes. Tanto podem ser as vozes da platéia do congresso, como também as vozes das plantas que ecoam na mente da autista. Enfim. Temos um grande solilóquio da terapeuta (Marina Vianna) durante mais de 20 minutos. Tentando explicar aos presentes o motivo de estar ali e falando de seu desconforto por não estar diante da platéia esperada, já que suas teorias sobre o autismo não empolgam seus pares. Como consolo, resta a ela falar para o público presente, mesmo que este não entenda muito sobre o assunto a ser tratado. É, nesse início, que o ritmo cai bastante. Marina não consegue prender a atenção do espectador. Mas talvez essa seja a proposta, visto que vivemos num tempo em que cada vez mais as pessoas são egoístas, incapazes de dar sua atenção ao outro. A palestra é sobre a superação de sua paciente autista (Mariana Lima) e de como esta conseguiu estabelecer relações com esse mundo estranho que a cerca. A peça cresce em ritmo e empolgação a partir da entrada de Mariana, com certeza uma das melhores atrizes que passaram por este Em Cena. Totalmente à vontade, sua personagem – Íris – vem falar ao público de sua capacidade de comunicar-se com as plantas. De como se estabeleceu um processo de entendimento entre classes tão distintas. E, a partir do instante em que Íris fala, todo o palco passa a ser dela. Pois é impossível sequer desviar o olhar. Desviar a atenção. A complexidade da composição de Íris possibilita para o espectador estar realmente diante de um autista. Estão lá quase todos os sintomas comportamentais, explorados de uma maneira minimalista. A forma com que ela dá o texto irradia uma veracidade e autenticidade impressionantes. As pausas, as quebras de ritmo, tudo isso se observa no impressionante trabalho de Mariana Lima. Fora isso, o lirismo com que concebeu a personagem e a simplicidade do olhar e até a simplicidade dos gestos desconexos são momentos de perfeita harmonia em todo o espetáculo. Marina Vianna, mesmo com o início entediante, absorve sua personagem de maneira dinâmica e pontualística. Há harmonia na relação de cada uma dessas mulheres, mesmo que observem o mundo por pontos de vista tão incongruentes.
Íris ganhou do tio uma máquina de abraçar. Há nela três tipos de abraços bem distintos. De intensidades diferentes. Por aonde vai, sua máquina a acompanha. É dela o barulho de britadeira que, por vezes, inunda o palco. Mas a complexidade de estabelecer relações com o outro – característica do autismo – é, na verdade, a dificuldade ou impossibilidade que temos – nós, criaturas ditas normais - de estabelecer relações com o outro. Como já dito no início desta resenha, Íris desenvolveu sua maneira particular. Ela compreende as plantas, mão não compreende o homem. Pois o homem não é para se compreender. Num momento antológico, Íris vai até a plateia e se dirige a alguém, a um espectador qualquer. Pede sua mão. Do espectador, percebe-se certa resistência. Mas, enfim, cede. Íris pega-a. Absorve a mão do outro para si. Tenta de alguma forma compreender o humano. Mas falta a liga, a essência necessária para se estabelecer esse contato. É o individualismo de que falei outrora. A incapacidade que temos de estender a mão. De ver e compreender o outro. A palestra é interrompida pelos organizadores que pedem para que todos deixem o local. A terapeuta pede que todos aguardem mais um pouco. A máquina de abraçar de Íris quebra. Incapaz de ter seu abraço automático, ela se entristece. É aí que a liga começa a deixar tudo mais homogêneo. A terapeuta quebra suas próprias barreiras. Pede para dar-lhe um abraço. Abraçam-se. Será o início de uma nova maneira de ver o outro? Saio do teatro reflexivo. Encontro Luciana Olendski (atriz e diretora) no corredor. Nos abraçamos, e, assim, ficamos por algum tempo. Segundos, é verdade. Mas necessários para começar a mudar as coisas.
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Texto: José Sanchis Sinisterra / Tradução: Eric Nepomuceno / Direção: Malu Galli / Assistente de direção: Arthur Braganti / Direção de Arte: Raul Mourão / Direção de imagem: Caetano Gotardo / Direção de movimento: Denise Stutz / Direção de cena: Márcia Machado / Elenco: Marina Vianna e Mariana Lima / Figurino: Simone Mina / Direção musical: Rodrigo Marçal Estúdio Arpx / Iluminação: Maneco Quinderé / Produção executiva: Roberta Koyama / Direção de produção: Henrique Mariano / Realização: Machenka Produções / Duração: 1h20min / Classificação: 16 anos
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Leandro Ribeiro tem 32 anos e é diretor de teatro, graduando do curso de Teatro-Habilitação em Direção Teatral da UFRGS. Criador da Cia. de Teatro Gato&Sapato, estabelecida em Porto Alegre desde 2008. Entre seus espetáculos, estão Dois perdidos numa noite suja (2008), A aurora da minha vida (2009), Docemente pornográficos (2010) e O abajúr lilás (2010). Atualmente prepara a estréia de Pigmalião, a nova temporada de A aurora da minha vida e o show Cale-se: as músicas censuradas na Ditadura Militar.
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