quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Modesto Fortuna: Navalha na carne


Afiadíssima navalha

Antes e depois da estreia do espetáculo da Maison de France, já tive oportunidade de manifestar a minha admiração diante desta consagradora confirmação do talento de Plínio Marcos. Não voltarei a insistir, portanto, sobre os aspectos mais obviamente impressionantes dessa excelente peça: a impiedosa autenticidade psicológica dos personagens a clareza da análise dos problemas da sua integração no sub-humano do mundo em que vivem, a extrema densidade do clima, o virtuosismo do diálogo. Poucos dias depois da estreia, toda a cidade já sabia que “Navalha na carne” é uma peça à qual se assiste com a respiração presa, e cujo fascínio não escapa nem o público mais conservador “a priori” menos disposto a enfrentar cara a cara a crueldade e a violência dessa “tranche de vie” passada num hotel suspeito de terceira categoria. 
Crítica de YAN MICHALSKI - Jornal do Brasil 19/10/1967

O Google tem 300.000 resultados para a busca “Plínio Marcos”. Quem quiser saber mais sobre este escritor e dramaturgo, carimbado pela crítica como autor maldito entre os malditos, nosso Baudelaire verde-amarelo, pode procurar no seu sitio oficial: www.pliniomarcos.com. Navalha na carne é sua terceira peça, foi escrita em 1966, imediatamente proibida, apresentada em sessões fechadas e leituras dramáticas às escondidas. Foi liberada em 1967 e, logo depois, censurada novamente, sendo permitida outra vez somente no final do regime militar já nos anos 1980.

A encenação é um acerto. Anda em pleno compasso com a proposta do autor. Temos em cena a violência, a desumanização, e outros conceitos caros ao autor, veiculados por um realismo absurdamente despudorado, que contrasta com a proximidade exagerada do público que é colocado “dentro da cena”, ou seja, dentro do quarto de Neusa Sueli. Compartilha com ela a humilhação e o terror imposto, tanto pela situação claustrofóbica, quanto pela dominação exercida pelo cafetão Vado. A plateia é convocada pelos olhares, gestos e palavras dos três impecáveis atores (Paula Cohen, Gero Camilo e Gustavo Machado), a responder a pergunta que não quer calar:

Nuesa Sueli - Será que somos gente? Será que eu e você somos gente?

Será que Veludo é gente? Será que tanta gente por aí pode ser chamada de gente? Até que ponto nós espectadores somos gente? E outras variações sobre o tema.

O venerando teatrólogo e crítico Sábato Magaldi anotou em sua crítica no jornal O Estado de São Paulo, de 12 de setembro de 1967, por ocasião da primeira montagem do texto: “Freqüentemente, o público ria de alguns palavrões ou de réplicas de sabor equívoco. Essa relação chegou a irritar-nos, como se nascesse de uma falta de inteligência do texto. Depois pareceu-nos que essa era uma válvula de escape para os espectadores não mergulharem num terrível mal-estar: um pouco mais de insistência na verdade e seria insuportável o clima dramático.”

Pois, a encenação proposta pelo diretor Pedro Granato provoca uma reação similar na plateia. O riso acontece diversas vezes. É solicitado pelos atores, pela encenação. O corte da navalha é fino e profundo. Antes do sangue jorrar é apenas um risco, um desenho cor-de-rosa na pele. E a gente ri pra não doer. Ou só nos resta dizer, como naquela piada: “Só dói quando eu rio”.

De novo Sábato Magaldi em sua crítica: “A grande ovação, no final do espetáculo de ontem, no Teatro Maria Della Costa, prova que as autoridades andaram certas, ao liberar Navalha na Carne, depois de tanta incompreensão da Censura. Os aplausos em cena aberta, repetidas vezes, vieram, como uma descarga emocional para equilibrar o incômodo provocado por numerosos diálogos de violenta dramaticidade. A literatura teatral brasileira nunca produziu uma peça de verdade tão funda, de calor tão autêntico, de desnudamento tão cru da miséria humana como essa de Plínio Marcos.”

Pois, malandramente, faço minhas as palavras do mestre, pois tudo isso pode ser dito da montagem de Pedro Granato, inclusive no que se refere a ovação no final da apresentação. Corra que ainda dá tempo. Nestes tempos de teatro pós-dramático, dá gosto assistir a um bom drama.




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"Meu nome é Modesto Fortuna * e poucas coisas ainda não fiz ou fui na vida: ator, diretor de teatro, diretor de eventos, vendedor de enciclopédia, contato de agência de emprego, frentista de posto de gasolina, ajudante de pedreiro, terapeuta rechiano, pintor de paredes, crítico de artes em geral, pé de chinelo, pizaiollo, auxiliar de escritório, auxiliar de cozinha, auxiliar de mecânico, contato de agência de publicidade, poeta menor, sparring de boxe, animador de festas infantis, produtor de festas infantis, cabo eleitoral, enfant-terrible, padeiro, pasteleiro, vendedor ambulante de pão de queijo na praia do rosa/sc, trambiqueiro em geral, ladrão de ocasião, traficante de drogas, segurança, artesão e otras cositas mas." Modesto Fortuna


  * heteronômio de Roberto Oliveira, diretor do Grupo Depósito de Teatro.

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