Foto: Mariano Czarnobai / PMPA
EGO-tik: um exercício de criatividade, rigor e generosidade
Inventividade e rigor. Estas duas qualidades vêm me mobilizando cada vez mais quando aprecio dança. Mais do que pensar em técnica, venho preferindo perceber como cada criador singulariza sua obra e como persegue rigorosamente o que ela solicita. Como coloca o filósofo italiano Luigi Pareyson, em seu Os problemas da estética: “o artista inventa não só a obra, mas, na verdade, a legalidade interna dela e a tal legalidade ele é o primeiro a estar submetido”. Aí se estabelece a tensão que não deve estar resolvida e, sim, intensificada: a que se dá entre liberdade e lei, originalidade e norma, contingência e necessidade. Eis aí, pra mim, o rigor artístico, técnico, ético que me interessa. E, assistir a EGO-tik, mais uma vez me afirmou essa percepção. O criador e intérprete Asier Zabaleta traz uma montagem criativa, inteligente, comovente, coesa. Há rigor e paixão, humor e sensibilidade.
Em cena, o sublime exercício de estar a serviço da obra e não em uma encenação masturbatória que assola tantas produções contemporâneas. E o curioso é que há a simulação de masturbação em cena e o trabalho escolhe como tema a própria condição egocêntrica capaz de gerar tantos imperceptíveis tiques nervosos, de comportamento e de caráter. A ironia está aí e disso se alimenta, pois a masturbação é midiática, videográfica e se acaba numa ejaculação de imagens. O problema não parece ser nosso Eu, mas a sua exacerbação narcisística. Atitude que impede reconhecer-se feito de muitos eus possíveis, nem sempre em letra maiúscula, nem sempre como um nome próprio, mas também comum, ordinário. O espetáculo, dessa forma, parece colocar em foco o drama da resistência ao devir e o apego a uma subjetividade que possa oferecer alguma falsa segurança. É emblemática a cena na qual o protagonista afirma estar onde não está. Ele prova e nos convence que tudo depende de um ponto de vista ou melhor de pontos de vista. E que esse Eu não só pode se duplicar, como se fragmentar, se virtualizar, se metamorfosear. Ou seja, alguém ainda acredita na tal essência do ser?!?
O melhor de tudo é toda essa filosofia que dá densidade à obra aparece em meio a risadas e a silêncios assustadores no pensamento, nada de um trabalho conceitual chato e monótono. Delicadeza e estranheza se intercalam nas cenas. Em certo momento, uma voz infantil em playback canta (ou melhor, tenta cantar) Somewhere over the rainbow, enquanto desafina, enrola quando esquece a letra e segue improvisando. Nada das impecáveis e enfadonhas interpretações das meninas-prodígio espalhadas pelo YouTube. Em certo momento o intérprete aparece de cuecas, enrolado em um pano branco e, enquanto dança, um globo de luz de discoteca pousa em seu dedo indicador.
A tecnologia, tão presente na cena contemporânea, beirando a gratuidade muitas vezes, aparece em EGO-tik de forma funcional, crítica e hábil. É envolvente e perturbadora a atmosfera das televisões ligadas com telas azuis que nada exibem, durante todo início do espetáculo. É engenhosa a articulações dos três monitores para construir o outro mesmo corpo de Zabaleta. É preciso e fascinante as coreografias que se desdobram da realizada em tempo real, em alguns momentos, reproduzindo as mesmas sequencias, em outros momentos, multiplicando as possibilidades coreográficas de se olhar esse corpo que tentar dançar em cena. Enfim, despeda(n)çando e recompondo a coreografia apresentada.
Resta ainda, e não menos importante, os blocos de madeira que formam o decisivo elemento cenográfico da montagem. Eles são no começo de uma grande base e gradualmente vai se transformando, em pódio, em “queijinho” de boate, e, finalmente, na melancólica e torturante prisão que vai sendo erguida e nos dando um ligeiro nó na garganta. Mais uma vez a escolha e uso desses elementos cênicos brincam com a ideia daquilo que é feito de fragmentos, que mesmo tão parecidos podem produzir múltiplas formas. E, portanto, que do mesmo se pode fazer muitos.
Por sua vez, o corpo em cena é habilidoso, sem ser exibicionistamente virtuoso e revelando padrões nada convencionais. Zabaleta desarticula-se, pausa, cai, revira-se, repete movimentos como se tentasse codificar algo que teima em escapar desse corpo. E,assim, cria uma dramaturgia corporal que se inaugura diante de nós. Um delicioso exercício de criatividade, rigor e generosidade.
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Texto, Coreografia e Interpretação: Asier Zabaleta / Figurino e Cenário: Asier Zabaleta / Vídeo: Iker Urteaga / Iluminação: Pascal Burgat / Trilha sonora: Andrés García / Produção: Ertza Dantza Garaikide Taldea / Coprodução: Departamento de Cultura del Gobierno Vasco, Loterie Romande (Suiça) e Bit-art / Duração: 55min / Classificação: 16 anos
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Airton Tomazzoni é coreógrafo, jornalista e diretor do Grupo Experimental de Dança da Cidade. Doutor em Educação pela UFRGS. Professor do Curso de Graduação em Dança da UERGS. Dirige o Centro Municipal de Dança da Prefeitura de Porto Alegre e é curador do Festival Internacional Dança.COM – corpo, performance e tecnologia. Atualmente é colunista do site Idança.net.
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