Foto: Ivo Gonçalves / PMPA
A máquina de abraçar
A peça A máquina de abraçar oferece muitos atrativos aos mais diversos públicos. Aliás, esta é a questão que se que impõe no teatro contemporâneo: com quem o artista fala. Esta pergunta foi feita por mim para Eugenio Barba em recente palestra no SESC Porto Alegre e sua resposta foi que se faz teatro para si mesmo. Em conversa com Marcelo Restori, ele também sustentou este ponto de vista. Porém, esta perspectiva, talvez, valha para o artista, mas certamente não para sua obra. As peças têm vida própria e, como filhos, fazem seu caminho à revelia dos pais. Desta forma, penso que cada obra teatral sofre a dor e a delícia de suas opções e, deste modo, escolhe e é escolhida pelo seu próprio público. E, mais trágico, não depende da vontade consciente do artista. Quando um espectador não gosta de determinada peça, há que se perguntar se ele é o receptor efetivo de tal obra, se ele é o endereço, o alvo, a mira, a vitima, o felizardo, enfim, se ele é a ilha em que pousa aquela garrafa jogada ao mar que é o objeto do teatral.
O tema do autismo que constitui um fenômeno obscuro dentro do humano em primeiro lugar. Casos clínicos levados ao palco oferecem um banquete emocional e intelectual. Recentemente estive em cartaz com O rei da escória com uma bela receptividade, cujo texto encontra-se em processo de roterização para cinema. Wilfred Bion, psicanalista iconoclasta inglês, nascido na Índia, afirmou que havia mais vida nos personagens ficcionais de Shakespeare do que a vida real de pacientes apresentados em congressos de Psiquiatria e Psicanálise. Sustentava, assim, que uma vida só pode ser retratada pela linguagem poética e que a ciência era um reducionismo da complexidade que é o ser humano. A narrativa da peça A máquina de abraçar, ao optar por uma forma de Congresso com apresentação de um caso clínico como opção cênica, se arisca, mas tem seus méritos. Lembra, em sua forma de apresentação, o Manual prático da mulher moderna com a diferença de que, neste o humor, é a busca enquanto que, no primeiro, há uma proposta de criar um clima de estranhamento, desconcerto e certo mal estar no público – tratado, cenicamente, como participante do Congresso – deixando implícito que há crítica velada e feroz à condução do caso que será apresentado. A hostilidade em apresentações clínicas costuma efetivamente acontecer neste tipo de congresso. Por isso a combinação é interessante. A peça tem um movimento inicial difícil, em que se trata de situar a peça como apresentação de caso clínico, mas que ganha vida com a entrada em cena de Iris, o objeto de estudo do caso. Neste momento, o monólogo se transforma no diálogo sustentado por intervenções explicativas para o público “especializado”, que somos nós, espectadores. A partir da entrada de Iris, a paciente autista, a peça ganha força dramática, pois temos acesso a sua versão dos fatos. Vemos sua relação vital com a samambaia, o modo como lida com o tempo, o corpo e afetos, e suas dificuldades em lidar com aquilo que é humano, têm carne e tem vida.
O debate central, em minha opinião, se trava entre diferença entre ser e desejar. Iris tem acesso ao trabalho da psiquiatra e não concorda com a palavra desejo e, com razão, embora a forma dos argumentos me parecessem estar aquém da capacidade apresentada pela personagem, funciona, porém dramaticamente e destaca o ponto de clivagem entre analista e paciente. Aparece o desejo do analista de que o paciente tenha um desejo. Enquanto que o estado de “paisagem” de Iris, sempre a mesma, sem enquadre, amorfa, se choca com o conceito de desejo da analista na medida que remete não a algo mais que mantenha a vida, mas restritivamente ao viver. Desejo é uma espécie de janela psíquica pelo qual vemos o mundo. É resultado de uma falta e, com isso, ao limite e à castração simbólica, tudo isso mais além e aquém do mundo de Iris que transcorre numa paisagem estática, sem ritmos maternos e, por isso, a busca de movimentos repetitivos, estereotipados que poderiam ser pensados como tentativas pífias de encontrar o ritmo do coração materno. Busca de um afeto, da respiração e de um estado emocional de acolhimento. Este deserto emocional determina o mundo autista, voltado apenas ao ser. Daí a máquina de abraçar, geringonça da madeira, que aperta Isis e acalma, simulacro de abraço, que remanesce fora de cena, aludida, e referenciada.
A interpretação das atrizes é convincente, a encenação simples, direta, crua. Um trabalho que demanda encontrar um público que o aprecie, pois enfrenta o desafio de conferir emoção num ambiente de cientificismo e, como Freud, em sua busca de conferir credibilidade cientifica para a psicanálise, constatou com certa decepção:
- Não importa por onde eu passe, um poeta passou antes.
E viva a poesia.
*
Júlio Conte é médico psicanalista, diretor de teatro, ator e dramaturgo. Membro pleno do Centro de Estudos Psicanalítico de Porto Alegre, fundador do Instituto Wilfred Bion e professor no Instituto Contemporâneo. Escreveu várias peças, entre elas, se destacam: Bailei na curva, Se meu ponto G falasse, O rei da escória e Larissa não mora mais aqui.
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