Foto: Ivo Gonçalves / PMPA
Corte seco ou o estatuto da pessoa no palco
Suponho que o senhor considera o fogo como um elemento seco. O champanhe também é 'seco'.
E que eu saiba, as pedras preciosas também não porejam.
Marguerite Yourcenar, De olhos abertos
Pisotear o óbvio: oh que sabor dos tempos, que coisa mais despojada, olha que tecnologia essas câmeras na frente do teatro transmitindo ao vivo os espaços paralelos, a mesa dos técnicos ocupando um canto inteiro do palco, a diretora falando números como um compasso cabalístico para os cortes, essa sensação sem fronteiras entre vida e atualidade, que mistura de experiências pessoais com fatos diversos do cotidiano, que rol de assuntos atuais, que coragem para enfrentar tabus contemporâneos, que mais? Deixando para lá essa primeira impressão, que, meio vesga, se subordina à cronologia, à "mucosa dos tempos", tenho para mim que a grande aventura do eu (e não apenas no teatro) é o despojamento. Dizer "ele", dizer "ela", dizer "isso" - assumir o alheio como próprio: o eu nunca é, o eu sempre está - e sempre no outro.
Corte seco foi para mim uma incontida demonstração desse despojamento: "agora eu sou a mãe e você é o pai, agora você abraça ele, agora eles morrem, agora não quero mais ter filhos, agora você vai lá dentro e se veste de mulher, você diz que era o seu amigo com o professor de inglês, mas não era, era você, não era? Hein?". Assim é que se faz uma peça de teatro sem personagens. Corte seco é uma peça de teatro sem personagens, as máscaras são provisórias e vão caindo uma a uma e o que sobra é um manancial emotivo que vai se evolando do palco em direção à plateia, povoando-a de risos que vão de abertos a nervosos, e de uma ansiedade levada a passear sem coleira e sem reflexo de atuação. Em mim, a apresentação atingiu níveis elevados de tensão, era como se tudo se esforçasse para enfatizar o seguinte: crua é a natureza da gente que opera por amálgama, tudo verde, as flores todas são botões, vocês estão vendo o que a gente precisa fazer para conseguir estar aqui desse jeito? As pessoas se tratam no palco pelos próprios nomes.
Se eu pudesse ter certeza de que seria bem compreendido, enfatizaria o caráter "letivo" que teve para mim essa apresentação (foi a apresentação de número 61 ou 62 desde que o grupo começou a encenar, e o processo até chegar ao primeiro palco levou nove meses). Pois eles não estão apenas mostrando cenas "descosturadas", eles estão querendo APRENDER a sentir mais profundamente o que os põe em risco. Ator-cobaia, ator-entregue, ator-aluno. Ator-pessoa. Isso para mim ficou bem claro. O que vi foi uma peça incompleta e tensa, e, acima de tudo, bem-acabada. E, como em qualquer balança, aprender não existe sem que algo seja ENSINADO em contrapartida (falo por mim, que saí do teatro num humor diferente do que quando entrei, e cantarolando Blue moon na voz de Elvis Presley, procurando no céu a lua cheia que, naquela noite úmida em Porto Alegre, exibia uma luz circular difusa e parada contra um fundo noturno escuro de veludo azul?).
Do grupo de pessoas no palco, a impressão que tive é que, por trás das marcações e das falas e dos diálogos e das partituras, o que havia era um punhado de profissionais encurralados por emoções desnudas, brotando como golfadas (ou seriam "gorfadas"?) da flor da pele. A impressão de que, quanto melhor eles não soubessem bem o que estavam sentindo, mais a peça conseguiria acontecer, atestando, pelo menos para mim, que existe um fio de água que corre por baixo dos rostos e das expressões, um fluxo mais surpreendente e mais difícil de controlar do que aquilo que o corpo, falando e se mexendo em compassos ensaiados, provoca, e que eles estavam ocupados em desvelar para o público. Profissionais, sem dúvida, muito honestos, cujo maior trunfo é não abrir mão de ser uma pessoa no palco.
E todos sabemos por vida própria que a pessoa não é uma entidade estanque nem nunca será. Isso talvez endosse a opinião de alguns amigos que já tinham assistido à peça antes de mim e que me comentaram: "mas muda todo dia; hoje foi mais longa; hoje chorei naquela parte; a diretora não deu tantos toques como daquela outra vez". Assumir o processo como caráter, assumir as máscaras com a pele do próprio rosto e sem caretas de atuação, provocar sentimentos desesperados, provocar sentimentos incompletos através da velocidade e da brusquidão de um corte brutal, ser o outro, ser pai, ser mãe, ser mulher, ser filho, amar, ser homem, estar sozinho, se expor, interiorizar, mudar de sexo, inter-cambiar, cortar, chorar e correr para o meio da rua. Cinco!, diz a voz feminina ao microfone. Outro fôlego.
E agora, falando como espectador de teatro e mantendo o tom para concluir, uma breve confissão: quando assisto a uma montagem, os atores, o texto, a direção, a luz e o som não me interessam separadamente. Falo por mim? Dizer "ele", dizer "ela", dizer "isso" - o que quero dizer é que, ao longo do Corte seco, estive VÁRIAS vezes no palco, embora o convite tenha sido feito formalmente apenas em duas ocasiões: "Quem é que gostaria de estar aqui no meu lugar?", ou qualquer coisa assim, pergunta um dos atores. Eu tive muita vontade de ir até lá, quem sabe vestir eu mesmo a saia que Paulo estava vestindo - o que foi suficiente para ter, de fato, ido. Ir sem ir, mostrar sem mostrar, ser o outro, sentir sentindo: o teatro não tem fim, não deixe o teatro morrer, não deixe o teatro acabar. Para mim, foi esse o borburejante recado dos cortes.
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Edson Migracielo é escritor, autor do livro de contos A extinção da primeira pessoa (Tambor, 2007) e do romance Sveglia, a sair em outubro pela 7Letras. Para ler mais: www.migracielo.net
3 comentários:
Não ví a peça mas adorei o texto!
Abraço,
Juliana
Não ví a peça mas adorei o texto!
Abraço,
Juliana
LINDO texto! Fiquei louca para s]assistir à peça! Beijão!
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