Foto: Guilherme Santos
Através do riso
“Os homens constróem pontes, jurando que está nascendo um rio”, diz Ingrid Pelicori, enquanto massageia o rosto de Claudia Tomás. São as atrizes argentinas de Antígonas, sem dúvida, a mais profunda e, ao mesmo tempo, espontânea conquista cênica a que assisti até agora. E olha que ainda estamos na segunda semana do Festival! O texto de Alberto Muñoz possui quatro momentos/atos/narrativas, cada qual com o seu ambiente: um salão de beleza, uma aula de introdução à técnica vocal, uma viagem de balsa e uma consulta de fisioterapia. Para mesclar as narrativas, a diretora Leonor Manso optou por uma escura luz violeta e uma trilha sonora marcada pela tensão. Já, no campo da direção geral, a principal qualidade que salta aos olhos é a paz desperta. Ela aproveita os sessenta minutos do espetáculo como ninguém, sem deixar espaço para afobação ou estrelismo. São duas mulheres imbuídas pelo próprio trabalho, sem necessidade de disputar a atenção do público. Fazem uso apenas da atuação encarnada: suas reações são plenamente críveis e bem lapidadas. É como desfrutar de uma comida com a medida exata de tempero.
A tranquilidade da direção repercute em todos os outros aspectos da montagem: não há muitas trocas de iluminação; o figurino é sóbrio, composto por vestidos lisos em um tom prateado; o cenário (que muito me agrada) é versátil e econômico, formado por um divã de madeira (utilizado de diferentes formas em cada narrativa) e uma plantinha de vaso; para finalizar, praticamente não há música de fundo. Tudo isso a fim de que o foco, a sustentação de Antigonas, seja a habilidade representativa.
A frase com a qual iniciei minha análise (dita pela personagem de Ingrid Pelicori) representa o desejo masculino de disputar com os deuses o poder da criação. Bip! Encontra-se aí uma possível ligação com a peça do grego Sófocles, na qual Creonte proíbe que enterrem o corpo de Polinices, o irmão de Antígona. Entretanto, ela não hesita ao desobedecê-lo, enterrando o irmão. Seu objetivo era cumprir os rituais fúnebres, para que a alma de Polinices não vagasse eternamente. Esse rito transcende qualquer proibição humana, é a lei divina versus a lei humana. Ao sair do teatro, o título Antígonas estava suspenso (obscuro) no ar, somente agora, digerindo a – reflexiva! – encenação argentina, pude agarrar o título no ar, ou pelo menos algumas letras. Estou certo de que é o mito que está sob a ótica da montagem, não o contrário.
A primeira narrativa aborda a preocupação neurótica feminina em busca da beleza, motivada pela opressão masculina. A ornamentação estética é uma forma de equalizar-se aos homens. É necessário sofrer em prol da beleza, entretanto, uma ajuda a outra, o que visualizamos no antológico enquadramento à La Pietá. E, se a mulher almeja ser homem, este almeja ser deus. Por isso a imagem de Cristo é equiparada à figura feminina, e Deus, à figura masculina. Quem diz isso é a personagem de Ingrid, ao passo que mexe o creme em um pote de metal, causando o mesmo som do badalar dos sinos de uma igreja. Então me veio uma comparação improvável: tanto a igreja quanto o teatro têm o poder de reunião.
A segunda narrativa é muito divertida - de fato todo o espetáculo é permeado pelo riso e pela descontração -, explora a relação entre uma arrogante professora de canto e sua aluna, Julia. Enquanto a professora obcecada (Claudia Tomás) fala de técnica e da primazia da música, Julia (Ingrid Pelicori) quer apenas o mágico. É a razão versus a emoção, a rigidez versus a liberdade. A seguir, nos é apresentada a terceira narrativa: conduzidas por uma balsa (engenhosamente adaptada ao divã), elas trocam palavras de rancor, desnudando sua relação; aqui usam vestes gregas para demonstrar a atemporalidade dos conflitos humanos, que pode muito bem girar em torno da inveja de uma pelas tetas da outra! A quarta e última narrativa expõe a consulta entre uma fisioterapeuta (Ingrid P.) e sua paciente (Claudia T.) imobilizada. Trata-se de um belíssimo exemplo da administração adequada de múltiplas facetas, conseguindo passar de uma personagem para a outra sem deixar resquícios. Enquanto, a fisioterapeuta discursa a respeito do movimento mentalizado das pernas, a paciente regurgita bulas de remédio – los prospectos –, afirmando que o mundo está fora do alcance das crianças. A fisioterapeuta modifica essa frase afirmando que o mundo está fora do alcance de todos! Pronto, agora ela também é paciente.
Enquanto os gremistas iam para o estádio Olímpico, eu, o cara das aspirações artísticas, ia ao Teatro Bruno Kiefer. Hoje, ser homem exige menos do que antes, ainda que existam padrões comportamentais muito presentes em nosso sexo: ser macho é ser firme e intolerante, é não titubear. A palavra "homem" carrega em seu lombo as palavras "força" e “auto-afirmação”, sendo talvez mais pesada - culturalmente - do que a palavra “mulher”, que está mais livre de amarras. Às mulheres, cabe a flexibilidade, a tolerância, a vaidade. Ser fêmea é provocar alvoroço, é aproveitar-se da imagem de fragilidade para tornar-se vítima.
Para mim, os sexos esperam demais uns dos outros. Mais do que isso, estão envenenados por imposições construídas de forma cultural. O futebol é tido como um esporte viril por conjugar elementos como firmeza, rapidez, força, suor e objetividade. Já o teatro, é tido como uma manifestação mais subjetiva. São necessárias percepção e sensibilidade para admirá-lo ou mesmo respeitá-lo. Agora vem a pergunta: por que as identidades do masculino e do feminino são tão divididas em nossa sociedade? Cada ser humano é um complexo de elementos femininos e masculinos que, ao invés de entrarem em conflito, deveriam ser integrados e estimulados, não dependendo do sexo para isso, e sim da afinidade individual. É uma busca pela fluidez, tal como o rio, que não divide suas águas ao a correr pela terra. A divisão de papeis sociais, a fim de estruturar famílias e relações saudáveis, proporciona não mais do que efeitos colaterais: desgasta e desestrutura. As mulheres de Antígonas, através do riso e da excelência artística, vieram nos lembrar de que esse sistema falido perdura.
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Guilherme Nervo é crítico de teatro do site www.poashow.com.br
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