quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Jacqueline Pinzon: Psicose 4h48

Foto: Lenise Pinheiro / PMPA

Dissociação

A obra Psicose 4h48 é um hit. Mesmo antes de comparecer ao espetáculo no festival, tratei de bisbilhotar no Youtube e pude assistir à mais de vinte versões entre teatro e dança de categoria profissional, amadora, estudantil e até variantes domésticas do texto de Sarah Kane.

Possivelmente esse grande número de montagens seja indicativo de algo que atravessa pessoas de diferentes lugares, idades e culturas, motivação a que este breve comentário não pretende dar conta. Por minha parte, contento-me em levantar a questão.

Inicialmente podemos dizer que Psicose 4h48 fala da depressão suicida. Assim, por uma necessidade ingênua de unir-se à biografia da autora com sua obra , costuma-se montá-lo como um solo feminino. No entanto, a peça oferece canais para se sair do drama de gênero e aceitar seu caráter de fala plural. De fato, o drama pessoal de Sarah Kane, sua morte e a possibilidade de Psicose 4h48 ser uma espécie de testamento macabro, francamente não me interessam, não quando eu leio o texto ou aprecio o espetáculo. Realizar tal conexão seria reduzir a sua obra a um amontoado de clichês, coisa que seu belo texto de fina poesia não o faz, de sorte que esta também não é a intenção da montagem participante do 17º Porto Alegre em Cena.

De maneira parcelada e descontínua Psicose fala da desintegração das identidades e da consciência de pertencer a uma sociedade mergulhada no preenchimento compulsivo de seus vazios de existência. Assim, habita-se um tempo e um lugar capazes de enlouquecer aos menos avisados, aos quais só resta regurgitar. E cada um o faz como pode.

O fato é que tamanha incomunicabilidade só pode ser plenamente enfocada no campo do simbólico, na leitura do artista, como o fizeram Marcos Damasceno, Rosana Stavis, Marcelo Bagnara e toda a equipe. Contudo, talvez falte à montagem um maior entendimento do que Hans Thies Lehmann (que recentemente esteve por estas plagas) chama de poética da perturbação, no interior da qual “as imagens perturbam as palavras”, poética esta capaz de instaurar uma narrativa em paradoxo e não um circuito em que as palavras remetem às ações e vice-versa.

Na montagem londrinense, há dois atores, pequena mesa, cadeira hospitalar, uma cadeira de rodas e remédios. Em Psicose 4h48, Rosana Stavis é corajosa e sabe despojar-se de vaidades, fazendo uma interpretação forte mas que, por vezes, desliza para o exagero com choro e gritos em excesso. Receita esta que, na minha opinião, sublinham mais do que acrescentam. Mas percebe-se seu excelente arcabouço de atriz e sua grande dose de entrega para que se estabeleça a teatralidade.

Conforme declarou no programa da peça, o diretor Marcos Damaceno busca gestos precisos e uma elocução que procura valorizar a poesia do texto (já bastante fragmentado e concretista, não necessitando de mais efeitos de fala.). Acrescente-se a isso os acertos do diretor na composição dos elementos espaciais e pictóricos. Entretanto, em relação ao andamento e à intensidade, há uma rigidez que divide a peça em lento ou rápido, em piano ou forte. Tais usos baseiam-se numa estrutura por vezes esquemática e redutora das nuances contidas no interior da própria encenação, que aqui não se realizam plenamente.

Por outro lado, está claro que a equipe quer fugir dos maniqueísmos acomodadores, seu maior trunfo. Quanto a isto, não sentimos raiva ou medo, nem pena ou ojeriza, apenas uma certa claustrofobia, acertada, mas que logo se afasta, pois a intimidade proposta não se efetiva. A montagem não busca estabelecer uma real conexão emocional ou um apelo à plateia como testemunha ocular. Os gritos e o alto volume da trilha sonora só fazem afastar o espectador. Desta forma, de Psicose 4h48 saímos mais distantes do que quando chegamos.


*
Texto: Sarah Kane / Tradução: Laerte Melo / Direção: Marcos Damaceno / Elenco: Rosana Stavis e Marcelo Bagnara / Figurino: Maureen Miranda / Iluminação: Nadja Naira e Fábia Regina / Trilha sonora: Vadeco / Produção: Marcos Damaceno Companhia de Teatro / Duração: 1h15min / Classificação: 16 anos

*
Jacqueline Pinzon, diretora e pesquisadora teatral do Núcleo Constantin - Teatro de Investigação e da Companhia do Carvão. Mestranda do PPGAC UFRGS com pesquisa voltada para a presença das novas mídias na cena contemporânea.


Nenhum comentário: