sexta-feira, 17 de setembro de 2010
Jezebel de Carli: O idiota
O idiota
Estou parada, computador, início de uma escrita, lembro de uma afirmação de Strindberg: “Não sei como escrevo. Tudo começa com uma espécie de fermentação, algo assim como uma febre agradável, que se transforma em êxtase ou embriaguez”. Ah, como seria “bacana” estar como Strindberg. Retorno e penso: pouco tempo para escrever, um espetáculo abundante, um tempo distendido, infinitas imagens, abundância novamente, excesso, máquina de criar, símbolos, signos, metáforas, Dostoiévski e um lituano interessante, de rosto marcado e considerado por muitos um gênio pela sua capacidade impressionante de criar ideias. Pergunto-me: como percorrer esses territórios múltiplos e produzir um texto que consiga transitar pelas redes propostas pelo espetáculo dirigido por Eimutas Nekrosius, adaptado do romance O idiota, de Fiódor Dostoiévski (1868)? Não tenho resposta, mas arrisco. O filósofo Gilles Deleuze afirma em uma “carta a um crítico severo” que há duas maneiras de se ler um livro. Pode-se considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro e, então, se busca um significado, e, sendo mais perversos, busca-se um significante e, então, haverá comentários, interpretações, explicações. Ou há outra maneira: considerar um livro como uma pequena máquina a-significante, ao que se coloca: isso funciona e como funciona? Se não funciona, se nada passa, pega-se outro livro. Ou vai-se embora do espetáculo! Uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Percebo que a minha relação com o espetáculo se dá na segunda possibilidade, na esfera das intensidades, ainda como afirma Deleuze, de “maneira amorosa”. O idiota me pegou, afetou, algo passou. Assim, de uma forma contaminada, vou movendo-me pela encenação, que despertou um desejo pela literatura: um dia lerei o romance de Dostoievski!!!!!
Então, amorosamente, assisti à montagem de Hamlet (2001 - primeira vez que a companhia Meno Fortas – “fortaleza da arte” – participou do Porto Alegre Em Cena) e impossível esquecer de um imenso bloco de gelo suspenso no Theatro São Pedro e de um Hamlet meio rock’n roll. Em Othello (2006) estávamos diante de intrigas de poder e de paixão, cujo assassinato de Desdêmona por Othello trazia nas ações dos atores as dúvidas e as hesitações inerentes aos atos de brutalidade e de vingança. Em Fausto, a provocação e a genialidade: como uma “corda” pode ser resignificada e utilizada de forma tão criativa e inusitada (inúmeras cordas eram manipuladas pelos atores e criam um movimento e uma plasticidade impressionantes)? Por que nunca pensei nessa utilização do objeto/corda, se, tantas vezes, o utilizo em exercícios? Resposta óbvia: porque eu não sou “ele”.
Retornamos, então, a 2010, cujo espetáculo O idiota fez-se no tempo de quase seis horas, em quatro atos e três intervalos, porque para Nekrosius, “o teatro é um antídoto contra a pressa insensata dos tempos de hoje”. E, como antídoto, a encenação nos provoca, emociona, assusta, nos faz preencher os vazios, buscar referência e construir sentido. Acompanhamos a história de um príncipe, Míchkin, que, ao retornar de um tratamento médico, é tido como um idiota, porque se move pelo coração, pela bondade e honestidade e, ao desejar o bem de todos, sofre as contradições de tal ato, a exemplo de um Dom Quixote. Na chegada a São Petesburgo, estabelece uma relação extremamente poderosa e cúmplice com Rogójin, um homem obcecado e apaixonado pela personagem Nastássia, rude e sombrio, constrói um antagonismo ao protagonista. Fechando o núcleo central da montagem, duas personagens femininas Aglaia e Nastássia, a primeira frágil, hesitante em seus desejos, incapaz de tomar decisões e que desperta amor e compaixão no príncipe. Já Nastássia é uma mulher atraente e fascinante, ardilosa e orgulhosa, seduz Míchkin, Rogójin e outros personagens masculinos. Muito está posto: o orgulho, a vaidade, o bem, a beleza, a sedução, o poder, o dinheiro, a perda, a morte.
Ao longo da encenação, imagens vigorosas e surpreendentes são reveladas pela plasticidade dos objetos e elementos cenográficos utilizados e pela força expressiva de atores que compreendem e dominam a linguagem estabelecida. Momentos como a cena em que 100.000 rublos são queimados no fogo de uma lareira e na qual o personagem Gania é atiçado a impedir que o pacote queime e, então, se apodere do dinheiro. Não há fogo, nem lareira, mas vemos o fogo derretendo o metal. Há apenas uma chuva de moedas jogada por sobre Gania que coloca um óculos vermelho e se contorce, rodeado pelos demais personagens que produzem uma polifonia de vozes, associada a uma sonoridade contundente e minimalista. Aliás, um dos elementos fundamentais da encenação é a música que, por vezes, opera produzindo e acentuando o clima e em outros momentos, interfere por meio de ruídos e sons, compondo uma partitura sonora que encharca a cena e as composições visuais. Parece-me que o teatro se resolve no próprio teatro. Do nada, do simples se revela o invisível.
Outro aspecto que gostaria de ressaltar é a gestualidade dos atores. Na minha opinião, poucos encenadores conseguem desenvolver um trabalho tão requintado e sofisticado no que se refere às ações estilizadas, não realistas e longe de uma verossimilhança. As ações são estranhadas, repetidas, coreografadas, teatralizadas, sem perder o orgânico e o crível. Por exemplo, no terceiro ou quarto ato, há uma cena em que as quatro personagens principais se reúnem para uma conversa ao redor de uma mesa, entretanto jamais sentarão “naturalmente” nessa mesa. Movimentam-se continuamente. Repetem ações, dão cambalhotas por sobre a mesa, saltam rapidamente de um lado a outro, tonificam matrizes corporais, enfim, produzem um jogo físico que sintetiza e corrobora a situação proposta: vamos esclarecer as “coisas”. Para Eugenio Barba, o encenador lituano é “um artista do teatro que domina tão bem a dramaturgia das ações quanto a dramaturgia das palavras”.
Durante toda a encenação, os corpos (carne, ossos, sangue, palavra, voz, ator) tornam-se máquinas teatrais e poéticas e criam um possível, um mundo à parte, um espaço e tempo que se apresentam para dentro da porta de madeira, substanciosa e aterrada, que se encontra suspensa ao fundo do palco. A porta separa os mundos. O fora e o dentro. Através dessa porta, os atores adentram a cena, os personagens e os mundos se apresentam e ao saírem por ela, somem na escuridão da coxia, na escuridão da cidade de São Petesburgo. A iluminação é simples, branca e sombria, contribuindo para a densidade das cenas. Chama-me a atenção como o encenador domina a condução e a transição de uma composição à outra. Há um certo caos, uma marcação anárquica e, de repente, algo inusitado se constrói magicamente, algo assim como quando a imagem de Natássia/noiva se revela a partir da manipulação de um pano e de um carretel de linha. As linhas surgem e temos os cabelos da noiva sendo arrumados por outras três mulheres.
Já não estou mais parada. Algo correu, conectou, aconteceu, foi para o papel/tela. Fiz minha leitura “amorosa” do espetáculo. Talvez extensa, alongada, excessiva, mas o assunto é abundante, farto e potente. Sei que discorri apenas pelos aspectos positivos. Poderia tecer considerações de que a referida montagem é, pra mim, uma peça mais “comportada” e menos transgressora em relação às outras (Othello, Hamlet, Fausto) ou que a narrativa toma uma importância demasiada ou ainda que os atores, por vezes, parecem sem espaço por conta dos elementos cenográficos. Bem, mas tudo me parece pouco significativo em comparação à instigante encenação que tive o prazer em assistir. Obrigada ao Rodrigo Monteiro pelo convite. Obrigada ao Luciano e equipe pela realização do festival. Finalizo com uma frase do espetáculo dita pela personagem Natássia: Vi um homem, pela primeira vez, na vida!!!!!
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Jezebel de Carli:
Atriz, professora e diretora de teatro. Bacharel em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes Dramáticas/UFRGS. Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com a dissertação Movimentos de encenação em corpos de pensamento-criação. Professora do Curso Graduação em Teatro: licenciatura da UERGS/FUNDARTE e do Teatro Escola de Porto Alegre/TEPA. Diretora dos espetáculos Parada 400: convém tirar os sapatos, A tempestade e os mistérios da ilha (adaptação da obra de William Shakespeare), Lipstick station e Hotel Fuck: num dia quente a maionese pode te matar, com a Santa Estação Cia de Teatro, companhia que integra o Projeto Usina das Artes da Usina do Gasômetro. Diretora cênica do espetáculo de dança Re-sintos, da Muovere Cia de Dança; e diretora artística da opereta La serva padrona com a Orquestra SESI/FUNDARTE.
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