Fotos: Guilherme Santos / PMPA e Mariano Czarnobai / PMPA
Duas montagens, duas boas inquietações
Alguns conhecimentos científicos, mesmo complexos, acabam de alguma forma sendo apropriados pelo comum dos mortais ao longo do tempo. Descobertas feitas por Freud sobre a mente humana influíram sobre literatura, pintura, artes cênicas e chegaram ao senso comum – trauma de infância, subconsciente, ego inflado são alguns dos termos usados no dia a dia com a displicência de quem maneja uma velha ferramenta, mesmo por pessoas que, como eu, jamais leram um tratado de psicologia.
O mesmo não se pode dizer dos conhecimentos da física. Muito tempo depois de ter sido provada a teoria da relatividade, ainda pensamos o tempo com continuidade linear. A física quântica já criou a teoria da incerteza, mas nosso pensamento ainda se organiza na relação causa e efeito da física clássica. Um novo modo de olhar pode mudar o passado, a história, mas o difícil é mesmo conseguir escapar de reproduzir esquemas já dados.
Se teatro se faz na relação palco/plateia, sempre serão mais difíceis os espetáculos cujo arcabouço se diferencia do já habitual, cuja arquitetura se diferencia das que estamos mais acostumados a percorrer ou habitar. Veja bem, não estou aqui fazendo juízo de valor. Dentro da “nova” forma, pode haver criações mais ou menos bem-sucedidas na sua capacidade de expressar ou sugerir, mais ou menos elaboradas, mais ou menos estimulantes. Interessa aqui é esse ponto de partida, estar diante da forma que escapa ao modo já “automatizado” ou esperado de receber o teatro.
Ontem vi dois espetáculos com esse arcabouço diferente, aquilo que costumamos chamar de experimental, no Poa em Cena – a montagem gaúcha Play-Beckett: enquanto espero, jogo; e A inquietude, espetáculo que vem do Rio, criado a partir de texto de Valère Novarina. Duas boas montagens com muitas qualidades e alguns poucos “senões”.
Em A inquietude, a abordagem não linear do tempo é talvez um dos aspectos mais estimulantes do texto, porque, ao não encontrar uma sequência temporal esperada, a gente se coloca em estado de alerta, começa um trabalho mental para entender aquilo que, por um lado, identificamos – e isso é fundamental –, por outro, estranhamos. A figura que está em cena e é “interpretada” pela atriz Ana Kfouri, num certo momento, diz: “se eu pudesse ser deus por um dia, jogaria todo mundo no vazio”. Num outro diz: “tudo é linguagem”.
A “inquietude” explorada por Novarina reside nisso, como lidar com a linguagem, uma vez que não se pode mesmo jogar tudo no vazio? Nascemos num mundo construído, onde tudo já foi nomeado e classificado, tornado linguagem. Como colocar isso diante dos olhos, criticar, pensar? Novarina busca fazê-lo inventando novos usos para essa mesma ferramenta, o idioma, a linguagem. Assim, ele desconstrói, desmonta, remonta, brinca com espaço e tempo.
Sobre sua obra Novarina escreveu certa vez que não se pode procurar sentido de suas peças em cada frase ou palavra, que não há um sentido particular em cada fragmento, mas apenas na visão “em perspectiva”. Sua dramaturgia tem de ser apreendida numa visão diagonal que abarque também o espaço e o tempo vividos aqui e agora. Mas é também e, por isso, extrapola fronteiras, uma investigação sobre a condição humana, com a buscada linguagem possível e necessária para esse tempo histórico.
A tradutora Angela Leite Lopes é alguém que conhece muito bem o teatro contemporâneo francês e a dramaturgia de Novarina, conhecimento fundamental para o bom resultado alcançado nesse trabalho. O mesmo se pode dizer da atriz e do diretor Thierry Trémouroux. É visível o domínio que ela tem das palavras e a propriedade com que as enuncia. Trata-se de um espetáculo atraente, bem-humorado, estimulante, que se acompanha com prazer. Mas, a mim, parece haver algum excesso. Curiosamente é uma espécie de outro lado da mesma moeda, uma espécie de efeito colateral de uma virtude: a busca por estimular no público a “criação de sentido” por meio de imagens sugestivas. Talvez por medo da dificuldade imposta pelo texto (que exige do espectador uma atividade mental intensa para tentar articular algum sentido para algo que não tem mesmo significação imediata), a equipe de criação busque sugerir muito através de imagens. A mim, por exemplo, pareceu totalmente “over” a projeção do vôo da asa delta só para citar uma delas. Não se trata aqui de normatizar ou de dizer que tal opção foge de alguma “essência” ou encenação “ideal” ou da medida correta – não existe a “fórmula”, tudo é possível de ser feito. O que chamo de “sobra” é tudo aquilo que parece não contribuir, até mesmo atrapalhar, essa visão em perspectiva. E, mais ainda, parece estar na direção contrária da proposta em cena. Foi como eu percebi o que chamo de excesso.
Play-Beckett tem direção de Alexandre Dill e Igor Pretto, mescla diferentes textos de Beckett – principalmente Esperando Godot – numa criação cuja linguagem a própria equipe define com interação entre dança e teatro. Tem em comum com A inquietude o mesmo desejo de estimular a atividade receptiva do público, obrigado a fazer a sua parte para dar sentido ao que está sugerido em cena. Basta a primeira imagem do espetáculo, a entrada da clássica dupla de clowns, para termos a certeza de estarmos diante de trabalho gestual elaborado executado por atores, Alexandre Dill e Igor Pretto, que unem domínio técnico e presença forte em cena.
Como se dá exatamente essa interação entre dança e teatro? Num determinado momento, os atores estão deitados ou apoiados estranhamente sobre pés e mãos com o corpo muito próximo ao chão: uma posição estranha, um chute nas pernas, um tombo, uma risada malévola e a disputa de poder está dada, sem palavras. Teatro expresso pelo corpo? Num outro momento falam uma poesia de Beckett acompanhada de movimentos de corpo. Dança com palavras? Evidentemente o que menos importa é rotular tal trabalho, tentar definir essa interação. Importante é que, com seus corpos, a dupla cria algumas imagens engraçadas, outras sugestivas, expressivas. E, o que é muito bom, quando as palavras chegam, sua sonoridade (não falo de significado aqui, mas de sonoridade mesmo) produz um efeito em sintonia com as imagens corporais. Aquele gestual poderia ser esvaziado por uma sonoridade não trabalhada.
Mas, também, há momentos mortos, vazios, com gestos que se estendem além do tempo e, pelo menos a mim, nada estimularam. Foi como se houvesse ali o problema oposto ao de A inquietude, como se os atores confiassem demais naquelas suas figuras fortes, como se só estar bastasse. Gosto de momentos de imobilidade, de silêncio em cena, mas o risco é sempre muito grande de eles ficarem vazios. E há alguns assim nesse espetáculo. Qual a medida? De novo, não existe fórmula.
Play-Beckett é um bom espetáculo ao qual pareceu faltar um traçado um pouco mais preciso em sua partitura. Por mais que o caminho seja em círculos, aquela dupla que começou lá no fundo da cena e terminou no proscênio realiza um movimento, mesmo que seus saltos sejam irregulares, mesmo que, no fim, terminem na mesma, ou que fim esteja no começo, sem nada a fazer. A trilha sonora, por exemplo, está entre os elementos que parecem estar fora desse movimento. E penso que a dramaturgia tem os seus problemas, na forma como a poesia mais abstrata se articula com os diálogos e com esse movimento mais amplo.
Difícil detectar o que provoca o (mau) distanciamento de uma cena com apenas uma mirada. Algo incomoda. A gente tenta pensar sobre esse incômodo. Quem sabe surge daí uma contribuição? Uma das vantagens do teatro é que não está numa lata gravado para sempre (ou digitalizado?). O palco é vivo, muda de uma noite para outra, e acertos de rumo, aprimoramentos, sempre podem ser feitos, se necessário. Mas a intenção de contribuir pode resultar, também, só em “bola fora”. Ninguém é dono da verdade.
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A inquietude
De: Valère Novarina / Tradução e Dramaturgia: Angela Leite Lopes / Direção: Thierry Trémouroux Assistente de direção: André Marinho / Interpretação: Ana Kfouri / Figurino e Cenário: Desirée Bastos / Edição do vídeo: Renato Livera / Iluminação: Renato Machado / Assessoria vocal: Maíra Martins / Música original: Ana Kfouri / Direção de produção: Marcelo Cabanas e Juliana Rubim / Assistente de produção: Camila Martins / Produção: Bateia Cultura / Realização: Cia Teatral do Movimento / Duração: 1h / Classificação: 14 anos
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Play-Beckett: enquanto espero, jogo
Direção: Aexandre Dill e Igor Pretto / Elenco: Alexandre Dill e Gustavo Susin / Figurino: Alexandre Dill /Iluminação: Igor Pretto / Produção: GRUPOJOGO / Duração: 55min / Classificação: 14 anos
*Beth Néspoli é jornalista e crítica teatral. Atuou durante 15 anos, entre 1995 e 2010, como repórter especializada em teatro e crítica no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo. Desligou-se da imprensa diária no início do ano para uma temporada de estudos. Atualmente é mestranda no curso de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
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