sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Beth Néspoli #5: O idiota



Além do palco

Cheguei ontem em Porto Alegre. Vim especialmente para ver o espetáculo do diretor lituano Eimuntas Nekrosius, desta vez O idiota de Dostoievski, mais uma dessas encenações cujas imagens vão ficar para sempre retidas na minha memória.

E são muitas as imagens fortes nessa encenação que expressa no corpo dos atores as emoções exacerbadas desse romance que tem a desmedida como constante. Todos os personagens centrais são movidos por paixões exacerbadas, e o termo paixão aqui não deve ser tomado só na referência do par amoroso, mas no sentido daquelas forças vitais que de tão intensas provocam comportamentos para além dos padrões de conduta ditos “civilizados”, gestos pouco “educados”. Não por acaso Freud foi beber em Dostoievski em sua dissecação da psique humana. Mas como expressar tantos sentimentos extremados durante tanto tempo sem ficar na partitura óbvia? Sem gritar, bater, chorar o tempo todo?

A encenação faz a passagem da “intenção” para a “in-tensão”, termo usado pelo ator e pesquisador Matteo Bonfitto em sua análise do trabalho de Peter Brook no livro A cinética do invisível. Não é mero jogo de palavras. O sentimento não chega (só) a partir da intenção de expressar uma emoção (que faz tremelicar ou subir o volume de voz), porém escapa do estrito campo da mente do ator para uma busca no corpo, daí da “intenção para a in-tensão”. Com tensão gestual é possível criar inúmeras imagens corporais que se transformam em signos abertos a leitura do espectador.

É o que se dá nesse espetáculo. Quase o tempo todo, a atenção oscila entre a compreensão dos acontecimentos e dos sentimentos envolvidos e a estranheza de sua expressão, que nos obriga, e nos presenteia, com imagens a serem “lidas”, muitas delas. A arrogância da elite ganha dedos que parecem viciados no gesto de apontar e dar ordens, há espelhos para unir duplos, e águas espirradas no palco em lugar da expressão óbvia de um ataque epilético.

Numa das primeiras cenas, ganha forma “concreta” o elo que unirá para sempre o Príncipe Míchkin e o passional Rogójin. Ambos se unem literalmente pelas mãos. Ora um é arrastado pelo outro para a sua trajetória, ora esses papeis se invertem, nunca de forma serena e tranqüila.

Num outro momento, a relação de amor e ódio (de intensa atração física e igual rejeição emocional), que faz o inferno da relação entre o viril Rogójin e a bela e ferida Nastássia, ganha expressão intensa no ato de pentear um cabelo e na forma estranhada como esses dois corpos se aninham, cabeça de mulher segura entre os joelhos do homem, gesto que exprime proteção e opressão a um só tempo.

Em outra cena (o encontro fatídico entre Nastássia, Rogójin, Aglaia e Míchkin), impressiona a “eloqüência” da coreografia das mãos entre a personagem Aglaia e do Príncipe Míchkin. É ali, olho nas mãos, que o espectador pode detectar o sentimento dos personagens antes que suas palavras o revelem: o temor de Míchkin pelo rumo que Aglaia está imprimindo à conversa, o desejo de impedi-la. A impossibilidade de amparo recíproco diante da força vital de “Rogójin e Nastássia” é possível “ler” nas mãos que tentam em vão se alcançar e se unir, que mal se tocam e já se separam.

Se Deus não existe, tudo é permitido? Se o homem abandona os princípios religiosos, sem a valoração religiosa um ato de amor vale tanto quando o seu contrário? Essa questão que perpassa toda a obra de Dostoievski está também no cerne desse romance. Homens sem deus agem movidos por seus interesses, desejos, necessidades, dores e amores. Esse homem, sem Deus, obrigado a pensar seus próprios valores a partir de princípios éticos ditados apenas por seu íntimo, pela convivência social, será mais feliz, construirá um mundo melhor?

Muitas questões inquietam o autor russo nesse momento de sua vida quando inicia a escrita de O idiota, em 1867. Em seu país, os servos foram libertos há menos de uma década, a organização social ainda está ligada à sociedade de castas, o poder é do Czar. A revolução burguesa de 1789 ainda nem grassou na nação russa, mas aos seus ecos já se unem os ideais socialistas. As conseqüências dessas transformações preocupam profundamente Dostoievski.

O Príncipe Míchkin é singular, porque diz o que pensa e pensa no que diz. Não fala em interesse próprio, mas em nome do que acredita ser o correto, ainda que o resultado possa ser desastroso. Não consegue manter, nem por algumas horas apenas, a conversação superficial adequada às reuniões da elite “educada”, conversa da qual estão eliminados temas como religião, ética, política. Por isso, dele desestabiliza os comportamentos de todos que cruzam sua trajetória.

Mas embora pareça absurdo, seria fácil converter os profundos embates emocionais, éticos, filosóficos e existenciais dessa obra à superficialidade de um melodrama barato. Ocorre que Dostoievski escreveu esse romance entre 1867 e 1869 e o publicou em capítulos, com um folhetim, numa revista russa. Mais de um século depois, o embate das paixões humanas ganhou milhões de abordagens em romances, peças, filmes, telenovelas. Isso provoca efeito sobre essa obra original. Efeitos sobre sua recepção.

Ontem, no Theatro São Pedro, foi possível perceber isso claramente na cena em que a personagem Nastássia escolhe casar com o príncipe Míchkin assim que descobre ter ele recebido uma herança. O público reagiu, riu, reconheceu ali uma cena de folhetim. A vida da moça bonita, pobre, perdida e desprezada vai mudar. O rapaz que iria casar por ela apenas pelo dinheiro, o outro que a queria comprar por cem mil rublos, todos seriam punidos com o fracasso. O príncipe justo e verdadeiro, cujo único defeito era ser pobre, agora é rico e, por isso, é por ela aceito. Fosse um folhetim televisivo e tudo terminaria aí, os bons seriam só bons, os vilões inteiramente maus. Mas é Dostoievski, tudo é muito mais complexo, e muito mais viria pela frente depois da desmontagem dessa cena. E, como se viu depois, Nekrosius deu conta da conhecida e estudada “polissemia” e “polifonia” desse autor. Cada um daqueles personagens tinha vários sentimentos contraditórios. Nada de separação entre núcleo bom e ruim, núcleo pobre e rico, sofisticado ou popular. Tudo se mistura no humano.

E não só o Nekrosius deu conta. A mim pareceu que também o público do Porto Alegre em Cena, afinal o teatro “acontece” (ou não) na relação palco/plateia. Essa montagem lituana tem cinco horas e meia com três intervalos de 15 minutos. O Theatro São Pedro estava cheio e cheio ficou. Poucos desistiram antes do fim. Nos intervalos as pessoas ligavam os celulares e, como infelizmente é comum ocorrer, alguns não os desligavam novamente. Mas o silêncio predominou na maior parte do tempo e havia uma evidente e intensa relação com o espetáculo o tempo todo. Os aplausos calorosos ao final comprovaram essa percepção. Chamou minha atenção a heterogeneidade do público na noite de ontem, quinta, dia 16. Havia desde senhoras e senhores de cabelos brancos até os muito jovens compartilhando a mesma atenção interessada. Na saída, seguindo pelos corredores de Theatro São Pedro, ouvi comentários muito entusiasmados atrás de mim. Virei para ouvir quem falava. Eram três senhoras que pareciam nada cansadas e claramente dispostas a conversar muito sobre o que viram. Tenho certeza de que fui mais feliz durante aquelas cinco horas por compartilhar a peça com elas. Quantas vezes a gente está ligado num espetáculo e o nosso prazer é estragado por conta de um público desatento? Teatro não se faz só no palco.

*

*Beth Néspoli é jornalista e crítica teatral. Atuou durante 15 anos, entre 1995 e 2010, como repórter especializada em teatro e crítica no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo. Desligou-se da imprensa diária no início do ano para uma temporada de estudos. Atualmente é mestranda no curso de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

Um comentário:

Anônimo disse...

A peça foi maravilhosa, coisa que não se vê no Brasil. A trilha original, com excertos de Wagner (A Valquíria, por exemplo), foi muito bem elaborada. Mas eu gostaria de saber o porquê de o final do romance não ter sido mantido nessa encenação. Por que o príncipe não estava passando as mãos nos cabelos e nas faces de Rogójin sempre que este gritava e delirava, já febril e sem sentidos, quando as pessoas entraram na casa do assassino de Nastácia Filíppovna, como concebeu Dostoievski? É um dos finais mais intrigantes e arrebatadores da literatura mundial, que suscitou e suscita incontáveis e intermináveis discussões. Eu fiquei durante mais de 5 horas estupefato, maravilhado, melhor dizendo, pelo que estava sendo feito naquele palco do São Pedro, imaginando como seria concebido esse final; no entanto, os últimos 5 ou 10 minutos, que pareceram atabalhoados, tiraram um pouco do poder da encenação, com Rogójin e o príncipe apenas sentados e olhando para o público. Eu queria o final delirante de Dostoievski, muito mais perturbador que o final da peça. De qualquer forma, foi uma experiência sensacional.

Ricardo H.