Histórias de Sandra Dani
Sou formado em Letras como professor de literatura. Sempre que alguém me fala de um livro do Saramago que não li, fico muito envergonhado. Ou então de Kafka, porque não li A metamorfose. Na literatura nacional, passei batido por Macunaíma, confesso. Que horror!... A coisa piora quando, formado também em cinema, estou numa roda em que citam algum filme do David Lynch. Tenho vontade de me esconder quando ouço: “Como assim, você não viu Veludo azul? Rasga teu diploma!” Ou então, “Você estava brincando aquela hora que confessou não ter visto Matrix, né?” A sensação de inferioridade é um pouco menor quando citam Iberê Camargo ou Portinari. Não que saiba tudo desses pintores, que conheça todos os quadros deles pelo nome e ano. Não, não! Mas é que é mais difícil encontrar alguém que entenda mais de pintura do que de literatura ou de cinema, portanto, na mesma medida, é mais fácil fugir delas. O fato é que cheguei à conclusão de que realmente não me sinto nem um pouco menor por não ter visto as peças gaúchas Boneca Teresa (1975) ou Como um sol no fundo do poço (1998). Mas já que estou me abrindo aqui nesse papo, digo, de início, que sou muito grato pela oportunidade de ter visto Heldenplatz (2005) e Medeia (2007). Meu nome é Rodrigo e tenho 30 anos. Em 1975, eu não era ainda nascido. E, em 1998, morava no interior de Gravataí e, embora fizesse teatro amador lá, havia de ter um motivo muito especial para pedir dinheiro a meus pais para viajar a Porto Alegre e assistir a teatro. Infelizmente, Como um sol no fundo do poço se foi. E, como ela, muitas outras peças. Não voltarão mais do jeito que estrearam, nunca mais ninguém as verá com o figurino original, com aquele tom de voz, o peso daqueles movimentos. Ficou apenas a lembrança de quem as fez e de quem as assistiu.
Um ser humano lembra que é ser humano quando encontra outro ser humano. Somos, afinal de contas, a parte de nós que não é o outro. Então, qual parte é “o outro”? “Conta aí que parte você tem!” Eis que Sandra Dani, a atriz de Boneca Teresa e de Medeia, conta para Helio Barcellos Jr., o terno jornalista teatral, sobre suas impressões acerca de sua primeira peça, Quem roubou meu Anabela? (1972), sobre sua infância em Osório, sua primeira graduação em Psicologia. Como o DAD, na pessoa do seu coordenador e de seus professores e alunos, invadiu um prédio a porrete a fim de garantir o espaço que até hoje tem. Como era tratar com a censura federal nos tempos da ditadura, como foi fazer mestrado em artes cênicas nos Estados Unidos. Essa é a parte dela que não é minha, nem do Helio, talvez. Mas ele, que nasceu um pouquinho antes de mim, (acho que ele tem 31 anos, não?) viu bem mais peças que eu.
Ao contar sua história, Sandra Dani, a grande atriz, e que todos conhecem pelos seus muitos Açorianos, pelos seus colecionáveis grandes momentos no teatro gaúcho, nos diz sobre como ela saía pela Cidade Baixa colando cartazes de suas peças no Teatro do Dad, hoje Sala Alziro Azevedo. Sobre como bordou o próprio figurino de sua personagem em Antígona, ou como era viajar numa kombi e se apresentar em ginásios e galpões pelos bairros afastados da cidade. É bom ouvir isso e chorar por quem termina um primeiro curso ou faz um único espetáculo e já quer ter um camarim só para si ou que nunca olha os sites das leis de incentivo, porque, afinal, é ator e não produtor. Sandra Dani dá lições, "dá nos dedos", mas não morde. Se bem que Irene Brietzke, outra grande atriz e mais ainda diretora, conta que, uma vez, Dani quase lhe rasgara o olho em cena aberta. Talvez seja bom ter cuidado!
Quem hoje vê a grande atriz nos espetáculos apolíneos de Luciano Alabarse, em que, se há três atores de um lado, certamente, haverá três do outro, ou em que, se alguém está no fundo à direita, outro alguém, sem chance de errar, estará na frente à esquerda, talvez não saiba que ela já fez trabalhos totalmente experimentais como A galinha idiota (1991) ou que estreou em Hamlet (1972) na louca montagem dirigida por aquele que viria a ser seu mestre, companheiro e marido, o Prof. Luiz Paulo Vasconcellos. E também não imagine que ela quase implora por estrelar um Beckett novamente, e logo. Alguém imagina Sandra Dani quieta em cena? Depois de ler o livro, eu acho bom não duvidar.
Sim, o livro. As conversas entre a atriz e o jornalista viraram um livro que o Luciano Alabarse e eu editamos. Meio complicado colocar a linguagem ‘batepapal’ nas estruturas da verbal, mas acho que conseguimos. Se naquela houve os cafezinhos com bolachas servidos pelo Prof. Luiz Paulo, aqui houve a minha terrível conjuntivite e a exaustão do Coordenador do Festival que torna nossa cidade a capital mundial do teatro em setembro há quase duas décadas. Valeu esse primeiro esforço, que será seguido de muitos outros livros dentro da coleção que agora estreia: Gaúchos Em Cena. Tudo isso para contar dos tempos em que nossa Grande Atriz se balançava em um ônibus Tramandaí – Porto Alegre até hoje, quando em Bodas de sangue é a Mãe (2010), sem se tornar menos inesquecível.
Tudo isso para que eu continue envergonhado por não ter lido o que está na biblioteca ou não ter assistido o que está na locadora, mas mais ainda para que não morra de vermelhidão por não ter lido esse presente que o 17º Porto Alegre em Cena dá a todos os gaúchos, aqueles do lado de lá do palco e aqueles do lado de cá.
Isso porque, desculpem, mas eu já li.
Rodrigo Monteiro
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Lançamento: 09/09 - 19h, no Foyer do Theatro São Pedro
2 comentários:
Saúdo um livro sobre a Sandra, colega tão querida com quem já dividi o palco algumas vezes, mas ainda não o suficiente, já que nossas contracenações foram poucas: "Os bacharéis" (2005), "O animal agonizante" (leitura dramática, em 2007), "Platão dois em um" (2009) e "Bodas de sangue" (2010), além do longa-metragem "Quase um tango..." (2009). Nós dois já conversamos, em mais de uma ocasião, de como seria bom encenarmos "Longa viagem noite adentro", de Eugene O'Neill. Espero que aconteça! Parabéns!
EXIBIDOS!!! Essa orelha tá ótima!
Saudações Sandra Dani Mito !!!
JT
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