quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Mauricio Guzinski: A megera domada


Infinitas possibilidades para domar uma megera

É impressionante a multiplicidade de leituras que o teatro de Shakespeare permite. Talvez por isso sua obra permaneça atual e a merecer sempre novas montagens. Com A megera domada, não poderia ser diferente; comédia vista há pouco tempo, em Porto Alegre, com a Cia. Rústica, dirigida por Patrícia Fagundes; e, agora, com o Grupo Ueba / Produtos Notáveis, sob a direção de Jessé Oliveira. Dois grupos gaúchos, dois olhares distintos e igualmente válidos para The taming of the shrew.

A tradução do título da peça, ao pé da letra: A doma da megera, evidencia “um processo de domesticação” (socialização, doma) que irá transformar a voluntariosa Catarina – intratável primogênita do rico Sr. Batista, irmã encalhada da cortejada Bianca – em “submissa” esposa do caça-dotes Petrúquio. Traduzir a peça como A megera domada, no Brasil, ou A fera amansada, em Portugal, é bem aceito “desde sempre”. Entretanto, ambas versões, antecipam “o resultado” da “doma da megera” como se ele fosse pacífico e certo, já no título. Todavia, para ter certeza sobre “quem doma” e “quem é domado”, nesta obra, é necessário ler com atenção até a última linha (e entrelinha) do autor.

Jessé Oliveira e o Grupo Ueba, para darem nova roupagem à Megera do Bardo e ao tema da dominação entre gêneros e papéis sociais, escolhem o recurso do “teatro dentro do teatro” que é utilizado por Shakespeare, não apenas nesta, mas em diversas de suas peças (Hamlet, Sonho de uma noite de verão, etc.). A equipe de criação decidiu eliminar o recurso tal qual aparecia no texto original – apenas uma moldura que introduzia o embate entre Petrúquio e Catarina – para transformá-lo em elemento unificador e condutor do espetáculo. Nesse viés, uma trupe de atores da Commedia Dell’Arte apresenta, em forma de teatro de rua, uma mescla do texto de Shakespeare ao de Goldoni, Arlequim, servidor de dois patrões. Desta forma, o metateatro, aqui, vem nos lembrar “o tempo todo” que o que nós estamos vendo é apenas uma peça, uma representação da vida. O recurso é evidenciado através da troca de personagens, máscaras e figurinos, aos olhos do público.

Enquanto construção dramatúrgica, as escolhas estão justificadas a contento, porém, ainda falta ao conjunto de atores um domínio maior do uso da máscara e da linguagem corporal codificada que caracteriza o gênero teatral pretendido. Necessita o grupo dar ao conjunto da obra a qualidade que só é alcançada em alguns momentos bem marcados, precisos e limpos; como aquele em que pretendentes e criados tentam escapar, em câmara lenta, da bengala do Sr. Batista, pai de Catarina e Bianca. Um belo e divertido instante.

O grupo e o diretor conseguem tornar uma provável dificuldade inicial (o fato de não possuírem uma segunda atriz, no elenco) na ótima solução de representar Bianca através de diversas bonecas: uma diminuta e inexpressiva Barbie, uma boneca de trapo que cresce até parecer boneca-objeto-erótico-inflável. A solução contribui para a discussão do tema.

A equipe reduz o belo (e polêmico) discurso final: Catarina fala pouco, mas intercala ao texto ações que contradizem suas palavras de submissão. Fica evidente que a domesticação de Catarina é consentida, faz parte do jogo íntimo do casal muito mais do que das regras de convívio social. A retirada das máscaras, depois das várias tentativas frustradas de um beijo entre Petrúquio e Catarina, faz comungar os olhares da direção, do grupo e do autor. Caem as máscaras, caem as convenções sociais: “A única coisa real... Amor!” (Citar a letra de Essa música não existe, de André Abujamra, é o que me ocorre para trazer o tema ainda mais para os dias de hoje!)

Afinal, os cortes e a livre adaptação foram necessários para transformar o texto em um espetáculo de rua com 55 minutos de duração. Através dessa nova possibilidade de olhar A megera domada, construída a frente de seu tempo por William Shakespeare, entre 1592 e 1594, chega outra vez ao público de nossos dias e vale a pena ser vista (e re-vista).

*

Ficha Técnica:
Autor: William Shakespeare
Dramaturgia: Jonas Piccoli
Diretor: Jessé Oliveira
Diretor Musical: Gutto Basso
Figurinista: Raquel Cappelletto
Assistente: Ciana Moraes
Elenco:
Aline Zilli – Megera e Hortêncio
Bruno Zilli - Grêmio
Cleverson Souza – Criados Grúmio e Biondelo
Fernando Gomes - Lucêncio
Jonas Piccoli – Petruchio e Hortêncio
Kevin Brezolin - Trânio
Rodrigo Guidini - Batista

Montagem realizada através do Prêmio Anual de Incentivo a Montagem Teatral de Caxias do Sul – 2008

* Mauricio Guzinski, ator, diretor e professor de teatro. Licenciado em Arte Dramática, Bacharel em Direção Teatral e Especialista em Teatro Contemporâneo, DAD/UFRGS. Professor da SMC, desde 1985, onde coordena o Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlos Carvalho e o Grupo Experimental de Teatro.
 

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