terça-feira, 14 de setembro de 2010

Patrícia Fagundes: Lonesome cowboy

Foto: Mario Del Curto


Cowboys


Poses de homem, clichês revisitados, porrada, suor. Para mim, não se trata de um universo restritamente "masculino", mas de fluxos de testosterona. Lembro de Beatriz Preciado em Texto Yonqui: "na realidade, nada permite afirmar que os efeitos produzidos pela testosterona são masculinos. O único que podemos dizer é que até agora tem sido na sua maioria propriedade exclusiva dos bio-homens. A masculinidade é tão só um dos possíveis subprodutos políticos (não biológicos) da administração da testosterona". Nesse livro brilhante e provocador sobre o lugar que ocupam o corpo, o sexo e a sexualidade na sociedade contemporânea, apresentado como ficção auto-política ou auto-teoria, a autora relata sua experiência com aplicações de testosterona em gel durante duzentos e trinta e seis dias, com o objetivo de descobrir e analisar os efeitos da droga no seu próprio corpo. Preciado é uma autora importante na linha dos estudos de gênero e da teoria queer, que bebem da filosofia pos-estruturalista, questionando conceitos assumidos como naturais sobre o que é ser "homem" ou "mulher", "masculino" ou "feminino". É difícil pensar hoje sobre tais conceitos sem considerar essa linha de estudos e pensamento, pelo menos eu não consigo. Então, quando vejo Lonesome cowboy, não penso que transita por um território privado dos bio-homens, como diria Preciado, mas sim por zonas "testoterógenas", que não obedecem divisões estritas de gênero (divisões, aliás, consideradas como culturais e políticas, que não teriam nada de "natural" ou inevitável).
O espetáculo é aparentemente simples.

Uma arena, que é ringue e palco, espaço vazio e parque de diversões. No chão, em cima do tradicional linóleo, algo que parece brita negra (não é brita, são fragmentos de pneu, mas parece, quebrando a limpeza do linóleo branco). Luzes de ribalta, contras e uma vara lateral em uma altura de uns dois metros, dezenas de pares a pino. Cinco homens na arena. Jogam, dançam, brigam, suam, varrem, trocam de roupa, se abraçam, compondo uma estrutura que continuamente remete a uma dinâmica de esportes. Tomam cerveja. Gestos e ações cotidianas misturados com movimentos de dança, uma dança que se insinua humana, lúdica e terrena - ouvimos ruídos no chão, percebemos o esforço, o peso. Em muitos momentos, movimentos de caos, touchê! (código de um jogo que se desenvolve em cena) e correrias - é tão difícil compor o caos, simetria e perfeição são bem mais manipuláveis e controláveis no exercício da composição cênica. Lonesome cowboys trabalha com um tipo de linguagem que parece preferir a imperfeição, o desequilíbrio e a multiplicidade ao controle detalhista de todos os elementos. Diz Anne Bogart que "não se pode criar a partir de um estado de equilíbrio.[...] Estar em desequilíbrio oferece um convite a desorientação e a dificuldade. Estás subitamente fora do teu elemento e fora de controle. E é aqui que a aventura começa". As coisas nessa arena são várias vezes um pouco tortas, vigorosas, explodindo vitalidade. No entanto, é claro que os atores/bailarinos evidenciam uma qualidade técnica apurada, a produção é eficiente, a direção/coreografia é sofisticada; sem precisar afirmar nada disso.

Retomando, penso que o espetáculo não é apenas aparentemente simples; ele é simples. Mas a simplicidade é possivelmente o mais difícil em arte. Inclusive Lonesome poderia ser mais simples - algumas músicas poderiam ser dispensadas, por exemplo, por excesso e por "breguice". A arena sugere proximidade, imagino que seria interessante se ao invés de estarmos no teatro do shopping estivéssemos em um espaço amplo, sentados em arquibancadas dispostas em uma arena de três lados. Imaginações induzidas pela atmosfera lúdica e corpórea que o espetáculo sugere, com performers que atuam em uma linha que chamaria humanista, expondo sua persona sem muitos artifícios, evitando a sobre-atuação sem chegar ao minimalismo na ação, estabelecendo contato visual direto com o público. (Ou melhor, tentando estabelecer, porque a estrutura do teatro do Bourbon não é adequada para esse tipo de relação). Nunca tinha assistido à Cia. Philippe Saire, que me remete a um grupo admiro e que há tempos acompanho, o inglês Forced Enternaiment (que é mais teatro que dança, mas acho que essas separações perdem cada vez mais o sentido na cena atual, híbrida e impura). Pelo humor, pelo jeito despretensioso, pelo jogo com a própria estrutura espetacular, pela forma de discutir o mundo na cena. (Olho o site da cia e confirmo a relação - máscaras de coelho, figurinos brilhantes de show, até mesmo dinamites atadas ao corpo - provavelmente, conhecem o Forced. Ou será coincidência? Na real, não importa. Vivemos na época das redes, apropriações, infiltrações e contaminações múltiplas). Sempre gostei de cowboys.

Mas depois de escrever esse comentário encontrei a Cibele Sastre, pessoa inteligente, elegante e sincera, e ela não gostou dos cowboys. Conversamos mais ou menos assim:


Cibele: Hum... Achei antiquado, cafona.
Patrícia: Ah, eu gostei. Concordo que não tem nada de novo, mas não acho que as coisas tem que pretender novidade.
Cibele: É, pode ser... Mas sei lá, to cansada desse tipo de dança.
Patrícia: Entendo, mas sei lá, gosto da coisa meio tosca que tem. Do humor, do jogo. Cibele: não é bem tosco, são virtuosos. Gosto de tosco, seria interessante se fosse mais tosco.
Patrícia: Eu gosto do estilo de atuação, isso de ações cotidianas, olhar para o público, etc.
Cibele: Eles olhavam para o público? Não percebi. Eu vi bem de cima, longe. Era interessante os desenhos criados com a "brita" no chão.
Patrícia: Isso eu não vi, eu estava na terceira fila. E achei que poderia ser mais próximo ainda, imaginei o público dispostos em uma arena de 3 lados, pertinho, tomando cerveja também, em um modelo mais de esportes que teatro de sala fechada.
Cibele: Talvez aí eu gostasse mais!

Então, reconsideramos o espetáculo a partir do espaço e concordamos na arena. Obviamente, essa consideração não é de nossa alçada, mas o interessante é o exercício do diálogo entre diferentes pontos de vista. Inclusive concretamente, nossos pontos de vistas eram distintos - eu vi mais de perto, ela de longe - o que inevitavelmente afeta a construção de nossas subjetividades e opiniões. A diferença, no entanto, não precisa ser motivo de briga, e, sim, de intercâmbio. Eu diria inclusive, de intercâmbios festivos. Eu estarei certa e claro que a Cibele está certa. O espetáculo é meio cafona, sim. Mas, como eu disse, eu gosto de cowboys, de cafonices, da Cibele, de divergências e polifonias tortas.


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Patrícia Fagundes: diretora e produtora teatral, professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, fundadora da Cia Rústica de Teatro. Doutora em Ciências do Espetáculo (2010) pela Universidad Carlos III de Madrid (bolsa CAPES), Mestre em Direção Teatral (2003) pela Middlesex University de Londres.

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