Foto: Ezequiel Kopel
Viagem com destino certo
“Como o sujeito-artista consegue comunicar a essência que o individualiza e o torna eterno se não através da matéria, porem é uma matéria tão bem desfiada que se torna inteiramente espiritual. O verdadeiro tema de uma obra não é o assunto tratado, sujeito consciente e voluntário que se confunde com aquilo que as palavras designam, mas os temas inconscientes, os arquétipos involuntários, dos quais as palavras, tiram o seu sentido e a sua vida.” Deleuze, ao tentar descrever o signo e a essência da arte, nos apresenta estas afirmações que nos levam a tentar tornar inteligente obras artísticas que nascem inspiradas por arquétipos involuntários.
A primeira viagem
Hoje, 12 de setembro, noite chuvosa, sentado na plateia da Sala Álvaro Moreyra, que felizmente estava lotada, para ver o espetáculo Cancionero rojo e, sabendo que deveria escrever sobre o mesmo, me peguei, por diversas vezes, refletindo sobre os escritos deleuzeanos. Percebi que a plateia estava eufórica como eu na expectativa de um devir. No entanto, bastou acender a luz e revelar em cena os atores Lila Monti e Dario Levin caracterizados de uma mistura de naturalismo com a principal máscara do palhaço (o nariz) para colocar todos nós num estado de curiosidade. Cada ator segurava uma pasta no estilo executivo enquanto corriam quase sem sair do lugar, dando a impressão de que viajavam há alguns dias em busca de um local onde descansariam por algum tempo. Até aqui tudo tranquilo, víamos imagens bastante utilizadas no teatro contemporâneo e, portanto, nada de surpreendente. A falta de surpresa não demorou e logo me senti negativamente tocado por alguns exageros nas expressões de Levin, expressões que, confesso, me incomodaram um pouco. No entanto, não tardou para que eu tivesse a primeira surpresa positiva e, mais uma vez, pensei nos signos deleuzianos da arte: com alguns bastões de giz, os atores iniciaram a construção de um universo imaginário e, ao mesmo tempo, real que constituía uma atmosfera simples e de uma ludicidade digna de um olhar sensível e contemplativo. Nesse momento, o palco deixa de existir, os atores também e temos a nossa frente dois palhaços que constroem cadeiras, barracas, mares e praias numa viagem que acabaria exatamente em uma praia deserta. Mais uma vez, fomos convidados a imaginar uma mulher em trajes de praia com apenas alguns riscos de giz. Acho que isso é a tal arte de que Deleuze fala, pena que eu tenha que estar racionalizando ela agora! Eu tenho a consciência de que, mesmo me esforçando, não conseguirei chegar perto do que ela realmente é e significa.
A segunda viagem
Depois de chegar e montar acampamento na beira da praia, os personagens suspendem sua viagem física e nos transportam para uma viagem histórica, através da qual nos vão revelando seus pontos de vista. Eles nos levam para visitar o nazismo, o cristianismo, o comunismo e vários outros momentos históricos, inclusive a raiz da origem do homem através da maçã de Adão e Eva. Para cada passagem histórica, o espetáculo ganha traços de luz que são pontuados pelo excelente desempenho dos atores. Como já citei antes, tenho algumas ressalvas quanto aos exageros de Dario Levin que não chegam a prejudicar seu desempenho, mas que poluem um pouco a imagem da cena. O que não acontece com Lila Monti, cujas imagens criadas são limpas, precisas e muito bem desenvolvidas. Por falar em desenvolvimento, quero deixar registrado o fato de que os momentos históricos me parecem necessitar de uma síntese mais arranjada. Às vezes, pareciam mais expositivas que teatralizadas.
Quanto à direção de Lorena Vega, não tenho muito que comentar a não ser pela concepção dos jogos de cena e das ferramentas utilizadas para contar a história. É uma direção simples que quase não se utiliza de efeitos cenográficos, nem de belos figurinos e maquiagens, mas que consegue contar uma história num universo sensível e divertido. Por falar em diversão, quero fazer mais uma ressalva sobre alguns recursos utilizados pelos atores para tornar o espetáculo mais atraente e engraçado, que acho não haver necessidade. São gestos que remetem, na grande maioria, a movimentos sexuais descontextualizados. O espetáculo é tão lúdico, tão sensível e tão humano que me perece não haver um bom lugar para as famosas tiradas de riso fácil. O palhaço por si só já traz o germe do humor na sua essência que qualquer exagero pode estragá-lo.
Depois de tudo o que já disse, acho que posso concluir que, na minha forma de entender a arte, em especial o teatro, posso dizer que, tirando as ressalvas que fiz, Deleuze falava da matéria dessa arte que a equipe formada pela diretora Lorena Vega, o coreógrafo Lucio Baglivo, a figurinista Mariela Berenbaum, a produtora Rebeca Checa, o Agustín Flores Muñoz e, em especial, os atores Lila Monti e Dario Levin trouxe de seu país (Argentina) para o apreço e o deleite de nós, brasileiros. Nessa noite, em que estávamos todos reunidos na sala Álvaro Moreyra, e, ao mesmo tempo, em vários lugares e “territórios”, conseguimos fazer uma viagem com destino certo, o destino dos os arquétipos involuntários de que a arte se alimenta.
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Pedro Delgado
Historiador e especialista em pedagogia da arte, dramaturgo, ator e diretor teatral. Conquistou, em 2004, o segundo lugar do concurso Funarte Dramaturgia com a peça O cavaleiro imaginário. Em 2005, com a peça Meu mundo de fio de lã, conquistou o primeiro lugar no mesmo concurso e categoria. Dirigiu espetáculos como Morte e vida severina, de João Cabral de Mello Neto; e Vestida do avesso, de autoria própria.
Um comentário:
Não tive o privilégio de assistir ao espetáculo citado por Delgado. Porém, é possível perceber, nesta crítica bastante ponderada que o mais importante é o fazer teatral e o que cada um de nós vê e sente diante do palco que se abre em muitas emoções. O mais relevante é quando tudo acontece e que bom que acontece o Em cena e que bela sacada esta de convidar este povo teatreiro de Porto Alegre para nos brindar com suas opiniões, suas ideias e seu conhecimento. Valeu, Pedro!
Alda Silveira - atriz
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