terça-feira, 7 de setembro de 2010

Beth Néspoli #1: Corte seco e Anatomia Frozen

Beth Néspoli: um festival para muitos públicos

Mais uma vez irei ao Porto Alegre em Cena. Já acompanhei muitas edições desse festival como repórter do jornal O Estado de S. Paulo, veículo do qual me desliguei no início do ano para uma temporada de estudos. Assim, pela primeira vez, estarei na mostra movida única e exclusivamente pelo desejo de ver alguns espetáculos que despertam em mim grande interesse e expectativa, mas que de outra forma não veria, como a montagem de O Idiota, de Dostoiesvki, dirigida pelo lituano Eimuntas Nekrosius. Esse diretor já alcançou renome mundial, suas encenações são citadas em textos de diferentes teóricos da cena teatral, no entanto no Brasil, até agora, só foram vistas no festival de Porto Alegre.

Mas o que atrai na programação não se restringe a esse aspecto de exclusividade. Há espetáculos nacionais e internacionais de longa trajetória igualmente atraentes e, o mais interessante, de diferentes linguagens, basta uma batida de olhos pela grade. Eu com certeza veria de novo e com prazer a montagem mineira Rubros: vestido-bandeira-batom; O grande inquisidor, com o Celso Frateschi e In on it, montagem carioca dirigida por Enrique Diaz – só para citar quatro que gosto muito e que não poderiam ser mais diferentes umas das outras. E adoraria aproveitar a oportunidade para ver espetáculos dos quais ouvi falar muito bem, mas infelizmente perdi, como Hamelin. Hoje, vou falar sobre Corte seco e Christiane Jatahy; e Anatomia Frozen.

Corte seco, dirigido por Christiane Jatahy, tem um numeroso e ótimo elenco em cena, que pode ser visto várias vezes, uma vez que um dia jamais será igual ao outro. No palco, além dos atores, estão a diretora e toda a equipe técnica. Os atores improvisam a partir de roteiros de cenas, que têm personagens bem construídos, alguns conflitos pré-estabelecidos, mas, ainda assim, não um texto fechado. A diretora sorteia na hora, diante do público, uma cena para iniciar o espetáculo. E corta num determinado ponto, aleatório, que ela decide na noite, no momento que achar melhor. O ator tem então de interromper a cena e imediatamente assumir outro personagem, se envolver em outra cena por vezes bem diferente. Daí o título, Corte seco. É o que se pode chamar de “teatro experimental”, sem medo de rótulos, uma vez que a cada noite se “experimenta” novas possibilidades. Os atores se valem de projeção em vídeo e até uma câmera on line que propicia ao público acompanhar cenas na rua, para onde eles saem, em alguns momentos. Claro, o formato permite variações e oscilações, uma noite pode ser muito melhor do que outra, e dentro de uma mesma apresentação pode haver momentos de intensidade e também tempos mortos. Esse é o jogo. Em conversa comigo, Christiane comentou que às vezes a cena não está funcionando, mas ela prefere não cortar porque subitamente algo de bacana pode acontecer. E também ela corta às vezes no meio de uma boa cena, porque a ideia é também não cair na tentação do “bom resultado”. O jogo aberto ao acaso é o cerne dessa criação.

Anatomia Frozen, dirigido por Márcio Aurélio, tem dois talentosos e corajosos atores no elenco: Paulo Marcello e Joca Andreazza. Trata-se de uma experiência radical de des-dramatização da cena. Nada nas interpretações é carregado de “emoção” ou “intenção”. Por outro lado, a cena é plena de signos visuais que “atuam” sobre o espectador e estão em total conexão com o texto de Bryony Lavery, que é uma espécie de dissecação científica da mente de um serial killer. É um daqueles espetáculos estranhos, mas que prendem a respiração e fazem com que a gente fique ligado no palco (pelo menos comigo foi assim) o tempo todo, mesmo que a compreensão não venha de forma imediata. Mas quando ela vem... Quando a gente se dá conta do que aconteceu ali... O título tem a ver com a tese de que um determinado grau de patologia num ser humano é algo sobre a qual não se pode agir, como se a “mente doentia” estivesse congelada. Não posso e não devo antecipar o que se passa na trama. Mas é daqueles espetáculos que a gente carrega por muitas horas, dias até, pensando sobre o que experimentamos ali, sobre o que ele nos leva a pensar sobre “pré-conceitos”, Justiça com J maiúsculo e vingança, potência e fragilidade, sobre o poder do conhecimento e a força ferina de uma palavra bem colocada. Enfim, mais um dos espetáculos que fazem valer a existência de um festival, sem dúvida a única forma de propiciar a circulação de criações como esta, sem qualquer apelo comercial.

No próximo post, o assunto será Eimuntas Nekrosius. Que venha o 17º Porto Alegre em Cena!

*Beth Néspoli é jornalista e crítica teatral. Atuou durante 15 anos, entre 1995 e 2010, como repórter especializada em teatro e crítica no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo. Desligou-se da imprensa diária no início do ano para uma temporada de estudos. Atualmente é mestranda no curso de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

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