Beth Néspoli: um festival para Eimuntas Nekrosius
Escolher, eis aí sempre um (bom) problema diante da vasta programação do 17º Porto Alegre em Cena. Raros acompanham a programação na íntegra. Em se tratando de artes cênicas, ou de qualquer outra arte, há públicos (com s, no plural). Parece óbvio, mas nem sempre se leva em conta, que um espetáculo absolutamente mobilizador para uns pode deixar outros indiferentes. E isso não necessariamente está ligado ao que se pode chamar de “qualidade” da produção ou ao “conhecimento teatral” (ou falta dele, acusação comum) do espectador. A experiência de vida, o ambiente cultural (Cultura aqui entendida no sentido mais amplo), o modo de viver, as referências acumuladas ao longo da vida, tudo isso amalgamado contribui para o espectador estabelecer uma relação x ou y com determinado espetáculo. São diferentes os parâmetros que movem as escolhas e que provocam sentimentos, terminada a peça, como satisfação, surpresa, decepção, frustração. Sem contar, às vezes, que a gente sai do teatro intrigado, sem saber direito que relação foi essa, precisando pensar melhor. Eu pessoalmente até gosto quando isso acontece. Mas também adoro quando saio com a plena certeza de ter vivido alguns momentos de puro prazer, seja por uma imagem tocante, seja por uma reflexão interessante, que ainda não tinha me passado pela cabeça, seja por ter rido ou me comovido.
Saí assim, fascinada, por exemplo, da montagem de Otelo que vi no Theatro São Pedro dirigida por esse lituano, o Nekrosius. Confesso que pela primeira vez entendi porque esse texto do Shakespeare se intitula Otelo e não Iago, sempre considerado o grande personagem. Nessa encenação, o general mouro ganhou dimensão de homem público e sua dor não se limitava ao campo pessoal, ainda que também viesse do sentimento de traição estritamente amorosa. Pesava sobre ele a responsabilidade para com os homens que comandava, sua grandeza estava no vínculo com seu mundo e seu tempo. Em contraponto, Iago não era o ardiloso seguro de si, mas um covarde desses que costuram uma intriguinha individualista, ora avançando, ora recuando de medo, buscando brechas para sua vingança e seu ressentimento (pessoal e privado) por não ter ganho uma posição de poder. Além de um sentido muito claro (uma das leituras possíveis, evidentemente, mas muito bem traduzida cenicamente), a montagem tinha imagens inesquecíveis, tudo se passava na beira do cais e a gente quase podia ver o mar revolto batendo no palco do Theatro São Pedro. E havia tal qualidade de interpretação, de presença viva dos atores que eu, num determinado momento, cheguei a duvidar de Otelo conseguiria matar Desdêmona, porque estava claramente tomado por sentimentos contraditórios diante daquela mulher adormecida, diante daquele ato que estava decidido a cometer e contradizia toda a sua “dignidade e virilidade”, seu papel de general a um só tempo guerreiro e guardião.
Bem, depois de tal experiência, a minha primeira com um espetáculo do Nekrosius (antes o festival já trouxera uma montagem de Hamlet dele que eu não vira) passei a escolher os dias de minha estada no festival – uma vez que não posso acompanhá-lo na íntegra – de modo a não perder a montagem lituana.
Vi o Fausto do Nekrosius no ano seguinte e estarei na plateia de O idiota. Curiosamente, acaba de cumprir temporada aqui em São Paulo uma montagem desse mesmo romance de Dostoievski, dirigida por Cibele Forjaz, dividida em três espetáculos de cerca de três horas cada. Diante disso, as cinco horas do Nekrosius ficaram até curtas. Gosto muito da encenação paulistana. A meu ver, sua principal qualidade está em sublinhar o embate entre duas linhas de força: de um lado, temos vários personagens movidos por desejos pessoais de posse – seja de bens materiais, seja da mulher cobiçada, seja de um cargo de poder ou um lugar de prestígio. Na contramão total disso vem o protagonista, o Príncipe Míchkin, totalmente indiferente a esses valores, cuja ética se baseia em relações de afeto, respeito, solidariedade e dignidade humana. Sua simples atitude, pelo contraste, faz vir à tona múltiplas facetas das relações entre os personagens, remove o lodo, provoca transformações. Há muitos estudos sobre a polifonia de Dostoievski, certamente estou simplificando ao tratar assim esse contraponto, mas, na plateia da montagem paulistana, esse aspecto saltava aos meus olhos e eu pensava: como tudo isso tem a ver com a sociedade contemporânea! Aí estão duas éticas – dinheiro x relações fraternas – que fundam comportamentos, dois eixos éticos que parecem se chocar o tempo todo nos dias de hoje, o que nos obriga muitas vezes a fazer escolhas muito difíceis, como a do personagem Gânia, que deixa literalmente queimar uma fortuna na lareira para se sentir digno. Não o faz sem contradição, arrependimentos, mas num dado momento, nessa cena da lareira, fortíssima, ele opta pela dignidade. E Dostoiesvski claramente acredita, pelo que se vê no romance, tratar-se de uma experiência sem volta na vida de um ser humano. É grande minha expectativa sobre qual será o recorte, o ponto de vista da encenação de Nekrosius para essa obra do escritor russo.
No próximo post, o assunto será outro texto de Dostoievski: O grande inquisidor.
*Beth Néspoli é jornalista e crítica teatral. Atuou durante 15 anos, entre 1995 e 2010, como repórter especializada em teatro e crítica no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo. Desligou-se da imprensa diária no início do ano para uma temporada de estudos. Atualmente é mestranda no curso de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
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