terça-feira, 14 de setembro de 2010

Camila Diehl: Carícias


Foto: Hans von Manteufell

Carícias: histórias ácidas de uma metrópole

Escrita pelo diretor e professor catalão Sergi Belbel, em 1991, a peça Carícias nos fala de relacionamentos, frustrações e incomunicabilidade em meio ao caos urbano contemporâneo. Composta por 10 partes, em que cada uma descreve o embate entre dois personagens, a peça trabalha uma estrutura dialógica, com cenas independentes, que se interligam pela repetição de um dos personagens da cena anterior.

A montagem pernambucana do texto de Belbel, traduzida por Christiane Jathahy, apresentada no Porto Alegre em Cena 2010, procura estabelecer uma identidade visual impactante, na qual todos os elementos, entre cenário, adereços, trilha sonora, iluminação e figurino, em tons de branco e preto, linhas retas e marcadas, convergem para uma frieza e uma mecanização das relações humanas, lembrando o vazio das grandes metrópoles.

As luzes fortes e brancas, de Beto Trindade, parecem expor, a nu, a crueldade do encontro entre duas pessoas feridas emocionalmente que buscam, sem sucesso, reatar laços de carinho e compreensão. As transições de cena são marcadas por uma música eletrônica percussiva, assinada por Fernando Lobo, e pelo som de um gongo, como nos ringues de luta, o que deixa ainda mais evidente o caráter de duelo proposto pela encenação.

Nesta paisagem, ao mesmo tempo melancólica e agressiva, o diretor Leo Falcão respeita o objetivo último do texto ao colocar os atores e seus discursos em uma posição de destaque. Em uma peça em que histórias ácidas são despejadas através de palavras, subtextos e intenções, uma direção atorial se faz necessária para que o espetáculo encontre o seu sentido.

Percebemos claramente a intenção de depurar e homogeneizar o trabalho dos intérpretes pela equipe técnica envolvida: Karina Falcão, que responde pela assistência de direção e preparação de elenco; Arnaldo Siqueira, preparador corporal e Leila Freitas, preparadora vocal.

De uma maneira geral, o elenco está integrado e cumpre bem a tarefa proposta. Há ritmo nas cenas, articulação e emissão de voz, compreensão das histórias que estão sendo contadas, dos sentimentos envolvidos, e dramaticidade na medida certa. Destaque para o jovem ator Rodrigo García, que consegue roubar a atenção com sua atuação despojada e sotaque carregado. Ana Claudia Wanguestel, Carlos Lira, Cira Ramos, Marcelino Dias e Paula de Renor completam o elenco da versão pernambucana de Carícias.

Dentro de uma linguagem realista de interpretação, elegida por Leo Falcão, observamos a criação de alguns códigos “não-realistas”, que seguem a estilização proposta pela sonoridade e pela visualidade do espetáculo, mencionadas anteriormente. Alguns exemplos são o uso de objetos reais, como talheres, copos e pratos vazios, que são manipulados pelos atores como se contivessem alimentos ou bebidas imaginários. É curioso também a falta de sapatos nos atores em uma caracterização realista. Tais escolhas, contudo, não conseguem se justificar dentro do universo do espetáculo, a não ser como opções funcionais em termos de produção e viabilidade.

Apesar de ser uma montagem muito bem cuidada e acabada tecnicamente, observamos uma incoerência no uso de signos, causada pela mistura de diferentes formas dramáticas. Na tentativa de quebra do realismo, o público é disposto nas laterais de um palco-corredor, cercando a ação; enquanto o diretor Leo Falcão utiliza convenções que lembram o teatro do absurdo, mimesis, narrativas e cortes cinematográficos.

Dentro deste contexto, algumas cenas tornam-se inverossímeis, como quando um casal, logo no inicio da peça, troca socos e pontapés, fingindo bater com violência um no outro, sem, de fato, fazê-lo. Ou, ainda, quando certos intérpretes não possuem a idade exigida por seus personagens.

De qualquer forma, o cineasta e publicitário Leo Falcão atinge um bom resultado em sua primeira experiência como diretor teatral. Carícias seduz pelos diálogos diretos, transições ágeis e marcações dinâmicas, características estas que foram transpostas da linguagem do cinema para o teatro de uma maneira lúdica e despretensiosa.

Completando a ficha técnica temos o cenário e a direção de arte de Walther Holmes, e os figurinos de Chris Garrido, que reforçam o caráter objetivo e contemporâneo da encenação em oposição à subjetividade de discursos patéticos e ferinos.

*

Camila Diehl é Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com especialização na área de Gêneros e Linguagens Dramatúrgicas, em Dramaturgia Corporal e Dança-Teatro. É dramaturga, diretora, atriz e produtora e, desde 2004, vem desenvolvendo um trabalho autoral que culminou com a fundação da Companhia Teatro da Transcendência. www.teatrodatranscendencia.com É diretora e atriz do espetáculo “Amêndoas e Caracóis”.

Nenhum comentário: