terça-feira, 14 de setembro de 2010

Marcelo Adams #2: As troianas - vozes da guerra

Foto: Ricardo Giusti / PMPA

As troianas- vozes da guerra

Em matemática, negativo com negativo dá positivo; positivo com positivo dá positivo; e negativo com positivo dá negativo. Em arte, grito com grito dá excesso; sussurro com sussurro dá reclamação dos espectadores que não ouvem o que os atores estão dizendo; e gritos com sussurros dá uma obra prima dirigida por Ingmar Bergman.

A fórmula de As troianas- vozes da guerra é juntar na mesma estrutura espetacular uma narrativa trágica mítica e uma narrativa trágica real. A mítica faz parte do assim denominado "ciclo troiano", filão temático a que recorreram os três principais tragediógrafos gregos (Ésquilo, Sófocles e Eurípides). Os mitos a que os gregos se dedicavam para compor suas tragédias eram inumeráveis, mas havia aqueles especialmente dramáticos (no sentido de dramaturgia), que aparecerem com mais frequência nas tragédias que nos ficaram. São exemplos de obras filiadas ao "ciclo troiano", que envolvem ações trágicas ambientadas na Troia em guerra com os gregos Hécuba, As troianas, Andrômaca, de Eurípides; Ájax, Filoctetes, de Sófocles. Por outro lado, as tragédias do "ciclo tebano" (referentes a Tebas), apresentam obras como As fenícias, de Eurípides; Édipo rei, Édipo em Colono, de Sófocles; Os sete contra Tebas, de Ésquilo. Há ainda as notórias peças que tematizam as desgraças dos Átridas, família que reinava em Argos: Orestes, Ifigênia em Áulis, Ifigênia em Táuris, de Eurípides; Electra, de Sófocles; Agamemnon, Coéforas, Eumênides, de Ésquilo. São alguns exemplos, que não exaurem a matéria.

Peço desculpas pelo preâmbulo excessivamente didático, mas acredito que ele contribua para deixar clara minha ideia sobre a encenação dirigida por Zé Henrique de Paula. Como referi, em sua montagem ele utiliza a estrutura de As troianas, tragédia escrita por Eurípides em 415 a.C., e a funde com uma ambientação trágica moderna: os campos de concentração mantidos pelo exército alemão na Polônia e na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, e que encerravam, dentro de seus muros, todos aqueles que eram considerados a escória, como judeus, ciganos, homossexuais e deficientes físicos.

É admirável a ideia da fusão proposta pelo espetáculo. Haverá acontecimento tão chocante, nas últimas décadas, quanto as atrocidades cometidas pelos nazistas? A destruição de membros de uma religião sendo assassinados por pertencerem a outra crença? O que nos foi legado pela História, conta que Troia (cidade que existiu, de fato) foi arrasada pelos gregos invasores, após dez anos de uma guerra árdua. Graças a uma estratégia tão famosa quanto simples (o cavalo recheado de soldados), a cidade de Ílion (outro nome para Troia; vem daí a Ilíada, de Homero) foi saqueada, incendiada, tendo os homens todos sido assassinados e as mulheres transformadas em escravas dos gregos. As troianas de Eurípides mostra o momento em que as mulheres de Troia estão sendo evacuadas para a Grécia, como escravas. As troianas de Zé Henrique mostra um grupo de mulheres judias chegando de trem em um campo de concentração nazista. Obviamente, o diretor identifica os gregos aos nazistas e os troianos aos judeus. É uma superposição perfeita de motivos, e a peça encontrará várias outras similaridades entre as quatro culturas, tão diversas.

Bem, o que ocorre então? A encenação opta por aproveitar os incidentes da peça de Eurípides, ambientando-os no contexto judaico-nazista e fazendo com que as personagens se expressem em alemão durante toda a peça. Temos nessa escolha da encenação o maior problema, que põe em risco todo o excelente trabalho.

Aristóteles dizia que o objetivo da tragédia era provocar a catarse, através da qual as emoções dos espectadores seriam purgadas, num misto de terror e piedade frente aos acontecimentos que presenciavam sobre o palco. O cidadão saía como que purificado de suas emoções "ruins", após assistir à peça. Portanto, era fundamental a identificação do espectador com a ação trágica que lhe era mostrada. Sem identificação, não haveria terror e piedade pelas personagens (ainda não estávamos na era brechtiana, não esqueçam).

O Holocausto é unanimidade quando se fala de ações chocantes e inexplicáveis (não levemos em conta Ahmadinejad). É impossível passar incólume e insensivelmente sobre imagens e narrativas sobre campos de concentração. Assim, Zé Henrique pega dois temas potencialmente trágicos - um muito distante de nós, o outro muito próximo - e os integra de forma cuidadosa e plasticamente bela, mas nos retira o principal: a possibilidade da catarse. As troianas- vozes da guerra é uma peça anti-catártica. E ISSO não é proposital, isso é um erro de cálculo, é uma desmedida da encenação. Usando uma terminologia afim, essa é a hybris da peça.

Hybris era o crime de excesso praticado pelos gregos, e foi o excesso que fez com que os ventos não soprassem para as naus de Zé Henrique de Paula e sua afinada equipe. Excesso de confiança, talvez. Contando com a cultura geral do espectador comum que, além de acompanhar a encenação em um idioma que lhes soa como grego, precisaria conhecer mitologia grega o suficiente para acompanhar a evolução da história (que, segundo Aristóteles, deveria ter um início, um meio e um fim). Essa tarefa é quase impossível, a não ser que houvesse na plateia estudantes do Instituto Goethe, ou descendentes de alemães. Entendia-se, aqui e ali, nomes como Helena, Hécuba, Cassandra, Astíanax, Andrômaca e Menelau. Mas esses nomes se perdiam em meio à melopeia germânica.

Sem entender o que ocorre exatamente, o espectador médio desinteressa-se, e tem à sua frente apenas a estética tão conhecida de dezenas de filmes de campos de concentração: os nazistas de um lado, agressivos e impiedosos e, do outro, os judeus, maltrapilhos e submissos. Os momentos de canto são, quase que invariavelmente, os melhores da peça. Nessas ocasiões, abandona-se o naturalismo contundente, que faz com que algumas ações se arrastem em seus tempos reais, não nos teatrais. Quando Zé Henrique joga o naturalismo para o alto, obtém seus instantes mais poéticos, estranhamente melancólicos: a bailarina no vagão; a visão de Cassandra, onde uma partitura de ações é repetida várias vezes pelos atores, em difrerentes andamentos; a conferência dos documentos das mulheres judias, em câmera lenta, perfeita.

A iluminação, a cenografia e os figurinos são impecáveis. A trilha sonora é bonita, os atores são bons, mas falta justamente aquilo que potencializaria esse itens individuais e os faria explodir em um espetáculo inesquecível: a adesão do público, que não acontece. E essa culpa deve ser carregada pela encenação. Para que dificultar as coisas para o espectador? Sim, é genial quando começa a peça e vemos Poseidon e Atena em versões alemãs e cinematográficas. Muito charmoso e cool. Sim, é muito interessante quando ouvimos o idioma alemão sendo pronunciado com muita propriedade pelo elenco. Isso causa um impacto muito positivo. Mas a permanência do alemão como língua da comunicação não funciona. É um capricho de encenador, é uma proposta estética baseada na teimosia, e não no melhor para o espectador. É hermético sem necessidade. Poderia-se dizer: para que identificar o espectador, queremos distanciar! Então para que escolher uma tragédia grega, o Holocausto, e propor ações que buscam a comoção da plateia?

Digo tudo isso me colocando no lugar do espectador não familiarizado com a mitologia grega. Foi constrangedora a acolhida do público ao final da peça: aplausos burocráticos, e que cessaram muito antes do tempo. Isso não acontece em um festival, a não ser que o público de fato tenha ficado aborrecido. Eu ouvi bocejos e suspiros de impaciência à minha volta, sentado na plateia.

Para finalizar, estranhei a ausência da cruz suástica em toda a encenação. Por que será? Em uma reconstituição tão apurada, me soou fortemente essa ausência. As troianas é um espetáculo belo, mas teimoso e levemente de nariz empinado. É como se Zeus, do alto do Olimpo, trovejasse para nós: "Vós não tendes a sensibilidade de perceber a genialidade quando ela se apresenta!".

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Texto: Eurípides / Tradução e Preparação de idioma: José Maria Freixa Pascual / Direção: Zé Henrique de Paula / Assistência de direção: Caroline Fioratti / Direção musical e Preparação vocal: Fernanda Maia Preparação corporal: Beto Amorin / Elenco: Inês Aranha, Norma Gabriel, Kelly Klein, Ci Teixeira, João Pedro de Almeida Teixeira, Alexandre Meirelles, Fábio Redkowicz, Léo Bertero, André Dallan, Bibi Piragibe, Claudia Miranda, Diana Troper, Karin Ogazon, Marcella Piccin, Bárbara Bonnie, Inês Aranha e Norma Gabriel / Participação em vídeo: Patricia Pichamone e Sergio Mastropasqua / Figurino e Cenário: Zé Henrique de Paula / Assistência de figurino: Karin Ogazon e Ci Teixeira / Iluminação: Fran Barros / Produção: Firma de Teatro / Duração: 1h10min / Classificação: 16 anos


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Marcelo Adams é ator, diretor teatral e dramaturgo. Graduado em Teatro- Interpretação Teatral e em Direção Teatral, pela UFRGS. Mestre em Letras pela PUCRS. Fundador da Cia. de Teatro ao Quadrado, sediada em Porto Alegre. Participou de dezenas de espetáculos como ator e diretor. Destacam-se Goela abaixo, O homem e a mancha (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2006), Burgueses pequenos, Édipo, O médico à força (Prêmio Açorianos de Melhor Ator em 2008), Bodas de sangue e Mães & Sogras. Estreará no próximo dia 15 de outubro, no Teatro de Arena de Porto Alegre, o espetáculo A lição, de Eugène Ionesco, nova produção da Cia. de Teatro ao Quadrado.

Um comentário:

Rosite Val disse...

Marcelo, as suas palavras sobre "As Troianas - vozes da guerra" são de uma beleza e de uma sensibilidade não muito comuns nos dias de hoje. Unir o conhecimento sobre o assunto a ser analisado à emoção, não é para todo mundo. Parabéns pelo seu belo texto. Eu, que já queria ver o espetáculo, agora vou mesmo.
Evoé!
Rosite Val
(Atriz e Jornalista)