terça-feira, 14 de setembro de 2010

Camilo de Lélis #3: As troianas - vozes da guerra

Foto: Ricardo Giusti

As troianas, uma tragédia para alemão ver

Toda vez que o artista se torna onipotente sofrerá a punição de – pela sua desmedida - tornar-se incompreendido. A onipotência da montagem de As troianas – vozes da guerra do núcleo experimental de São Paulo é apresentar um texto grego falado em alemão para um público brasileiro.

Está claro no nome do grupo que se trata de experimento, porém nos resta o benefício de algumas dúvidas a respeito desse teste: porque depois de um achado genial, que é mostrar o tempo circular da filosofia grega retornando na repetição Troia /Auschwitz, o diretor Zé Henrique de Paula levanta este tapume linguístico entre a encenação e o espectador? Se Eurípides escreveu em grego para ser compreendido pelos gregos, por que esta encenação aposta no estranhamento idiomático?

Se as ações bastassem para transmitir o sofrimento das mulheres troianas/judias, não seria o caso do experimento ser totalmente sem palavras, transmitindo as emoções apenas pelas canções em alemão, inglês e iídiche como, aliás, está escrito no programa da peça na revista do Poa em Cena?

Perguntas... Apenas indagações de um espectador que reconhece que a prosódia alemã está convincente, mas que exige uma legenda para ser decifrada.

A substituição do poderio helênico pelo nazismo já é uma metáfora suficientemente eficaz. A tragédia poderia, portanto, e, de preferência, ser falada em nosso idioma. Fora este deslize (o de não querer ser entendido), todo o resto da peça está muito bem. A iluminação e o cenário – um típico Waggon da ferrovia alemã à época da 2ª guerra – se completam num realismo adequado à situação proposta na releitura da tragédia.

A marcação cênica mostra precisão nos movimentos agônicos entre figura e fundo, o que dá um jogo de equilíbrio/desequilíbrio condizente com a credibilidade da ação. Os soldados alemães são gregos e as mulheres judias são troianas, a metáfora é clara, e é um grande acerto da direção. O judeu colaboracionista é uma figura impressionante pela sua postura de coreuta “em cima do muro”. Menelau, Hécuba, Cassandra e Helena estão muito bem representados por intérpretes seguros e bem afinados.

Aliás, afinação é outro ponto forte na encenação musical de As troianas, e, me parece, que é o carro chefe na conquista da adesão do público que, mesmo não tendo empatia com as paixões representadas em cena, se enternece com as canções, pois a música, sim, é linguagem universal. Já, a língua é a Pátria, e a “harmatia” desta encenação de As troianas é não levar em conta este fator tão caro aos gregos antigos: a língua, como maior bem comum entre os iguais.

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Camilo de Lélis, diretor de teatro, entre seus trabalhos destacam-se: O ferreiro e a morte, Macário, o afortunado, O estranho Senhor Paulo, A bota e sua meia e Mehrda, presidentas que foram agraciados com o Troféu Açorianos da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre em várias categorias. Seus trabalhos foram vistos em circulação por quase todo Brasil. No exterior, destacam-se as apresentações de Jacobina e de Mehrda, presidentas em Montevidéu (em 1996 e em 2001, respectivamente) e de O estranho Senhor Paulo em Buenos Aires (1997). A bota e sua meia apresentou-se na Alemanha, em 1998, e em Portugal, em 2003, dentro do Projeto Cena Lusófona. Em 2006, as encenações de Camilo de Lélis foram objeto da monografia Carnaval, encenação e teatro gaúcho, premiada no Concurso Nacional de Monografias Gerd Bornheim. A obra foi publicada em 2007, registrando em livro a contribuição desse encenador para o teatro.

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