Alcançar as estrelas
A coreografia precisa, harmônica, clara e leve revela uma rede complexa de relações. Simplicidade no figurino, extrema vitalidade do corpo, o branco sereno que realça os músculos – a pele fala, grita, expressa. A iluminação é tão perfeita, que não parece artificial. A luz parece que vem de outro lugar – vem de dentro dos dançarinos e vai para fora, transforma-se em aura, os engrandecendo ainda mais. A luz, neste espetáculo, é, literalmente, “iluminação”. Corpo, espaço, tempo em completa harmonia. Tempo estendido, tempo em que se permite contemplar, tempo que respeita a construção do momento, que logo será destruído para sermos surpreendidos. Em muitos momentos, a leveza dá lugar ao peso, ao chão, ao aterro, à contração que, ao mesmo tempo, continua sendo leve e flutuante.
“Tobari” não se compreende, se sente. O grito é mais potente quando é silencioso. A dor pode ser mais latente quando é calada e a esperança mais vibrante quando pode ser transmitida apenas no olhar... O ciclo vital não é apenas o tema da encenação, ele é a encenação. Ushio Amagatsu, em seu solo silencioso no meio de um roda formada por outros dançarinos, movimenta sua cabeça, seus braços e seu tronco de uma forma que me fez praticamente sentir suas mãos tocando a minha própria cabeça. Em certo momento, senti um arrepio, como se ele estivesse espantando os seus e os meus fantasmas também. O que os corpos daqueles dançarinos expressaram gerou uma relação íntima e profunda comigo mesma, com os outros, com o espaço, com o tempo, com a vida. Se eu pudesse, todos os dias, buscar a sensação que senti naquele encontro de presenças – meu com a obra – certamente eu poderia compreender melhor o porquê de uma vida toda dedicada à arte.
“Tobari” significa cortina. Para mim, uma cortina transparente, pois eu vi através dela. A cortina que não separa espaços, mas que mostra que eles são permeáveis, que existe osmose, que o espaço de cá pode, a qualquer momento, fundir-se com o de lá - um espaço comum para a convivência do ser com ele mesmo. Vejo hiper-realidade – de tão esplêndido que é o “estar presente” deste grupo no palco, no mesmo instante em que tudo pode também me parecer fantasia, irreal, surreal. Vejo a intensidade daquilo que me apresenta como verdadeiro e a verdade daquilo que se mostra como intenso. Sensação de sonho – que se intercala com a realidade. Em um dado momento, me percebo de olhos entreabertos vivenciando um estado onírico para, em seguida estar com os olhos completamente escancarados chocada com tudo o que vejo. E penso: “estava sonhando”? Não, estava acordada tentando alcançar as estrelas.
Raquel Purper
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Atriz formada pelo TEPA (1996), jornalista formada pela PUC-RS (1999), bacharel em Direção Teatral pela UFRGS (2006). Integrante do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre desde 2008. Atualmente, mestranda em artes cênicas pelo PPGAC-UFRGS.
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