sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Raquel Purper: Tobari

Foto: Creative

Alcançar as estrelas

Meu primeiro contato com o grupo Sankai Juku foi no Porto Alegre em Cena de 2007, no mesmo Teatro do SESI. A obra apresentada naquele ano foi “Kagemi”. Assisti ao espetáculo da plateia alta, o que não possibilitou a visibilidade das expressões faciais dos dançarinos, porém me proporcionou uma experiência da obra como um todo. Uma das sensações que experimentei naquele dia não sai da minha cabeça até hoje: em um dado momento da encenação, parecia que os dançarinos estavam flutuando. Lembro que abri bem os olhos para verificar como aquilo podia estar acontecendo de forma real e, quanto mais eu me esforçava para deixar os olhos focados no movimento e tentar descobrir qual era o mistério, mais eu via, de fato, a flutuação. Ao assistir “Tobari”, da plateia baixa, pude vivenciar outro tipo de experiência, pois as expressões faciais estavam muito mais perto. Para quem, como eu, tinha a ideia de que os dançarinos eram todos praticamente iguais, foi uma surpresa, pois pude ver, inclusive, todas as gerações reunidas. Dentre tantos sentimentos que “Tobari” me despertou, a primeira sensação que, em um primeiro momento, pareceu diferente de “Kagemi”, foi a de enraizamento. No entanto, no decorrer do espetáculo, percebi que o flutuar e o enraizar são amigos, íntimos e convivem, no grupo Sankai Juku, em um mesmo espaço e tempo.

A coreografia precisa, harmônica, clara e leve revela uma rede complexa de relações. Simplicidade no figurino, extrema vitalidade do corpo, o branco sereno que realça os músculos – a pele fala, grita, expressa. A iluminação é tão perfeita, que não parece artificial. A luz parece que vem de outro lugar – vem de dentro dos dançarinos e vai para fora, transforma-se em aura, os engrandecendo ainda mais. A luz, neste espetáculo, é, literalmente, “iluminação”. Corpo, espaço, tempo em completa harmonia. Tempo estendido, tempo em que se permite contemplar, tempo que respeita a construção do momento, que logo será destruído para sermos surpreendidos. Em muitos momentos, a leveza dá lugar ao peso, ao chão, ao aterro, à contração que, ao mesmo tempo, continua sendo leve e flutuante.

“Tobari” não se compreende, se sente. O grito é mais potente quando é silencioso. A dor pode ser mais latente quando é calada e a esperança mais vibrante quando pode ser transmitida apenas no olhar... O ciclo vital não é apenas o tema da encenação, ele é a encenação. Ushio Amagatsu, em seu solo silencioso no meio de um roda formada por outros dançarinos, movimenta sua cabeça, seus braços e seu tronco de uma forma que me fez praticamente sentir suas mãos tocando a minha própria cabeça. Em certo momento, senti um arrepio, como se ele estivesse espantando os seus e os meus fantasmas também. O que os corpos daqueles dançarinos expressaram gerou uma relação íntima e profunda comigo mesma, com os outros, com o espaço, com o tempo, com a vida. Se eu pudesse, todos os dias, buscar a sensação que senti naquele encontro de presenças – meu com a obra – certamente eu poderia compreender melhor o porquê de uma vida toda dedicada à arte.

“Tobari” significa cortina. Para mim, uma cortina transparente, pois eu vi através dela. A cortina que não separa espaços, mas que mostra que eles são permeáveis, que existe osmose, que o espaço de cá pode, a qualquer momento, fundir-se com o de lá - um espaço comum para a convivência do ser com ele mesmo. Vejo hiper-realidade – de tão esplêndido que é o “estar presente” deste grupo no palco, no mesmo instante em que tudo pode também me parecer fantasia, irreal, surreal. Vejo a intensidade daquilo que me apresenta como verdadeiro e a verdade daquilo que se mostra como intenso. Sensação de sonho – que se intercala com a realidade. Em um dado momento, me percebo de olhos entreabertos vivenciando um estado onírico para, em seguida estar com os olhos completamente escancarados chocada com tudo o que vejo. E penso: “estava sonhando”? Não, estava acordada tentando alcançar as estrelas.


Raquel Purper

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Atriz formada pelo TEPA (1996), jornalista formada pela PUC-RS (1999), bacharel em Direção Teatral pela UFRGS (2006). Integrante do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre desde 2008. Atualmente, mestranda em artes cênicas pelo PPGAC-UFRGS.

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