quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Rodrigo Monteiro #1: Alkohol

Foto: Andrew Sykes

Casamento

Há um diretor de teatro polonês chamado Tadeusz Kantor (1915-1990) que ficou muito conhecido por suas experimentações teatrais entre anos 40 e 70. Algumas vezes em cena simplesmente sentado assistindo aos seus atores ou ele mesmo interpretando algum personagem, uma das questões que chamam a atenção do ponto de vista da narrativa é seu tema. Kantor, além de ter ficado conhecido pelas performances e happenings, apresenta ao mundo ele mesmo, suas memórias, seu interesse pela cultura judaica (sendo católico), seus exorcismos. Há muito o que se dizer sobre ele, mas, no segundo dia do 17º Porto Alegre em Cena, me vem a imagem desse senhor sentado no palco, de costas para o público, ouvido sua própria história pelos movimentos do seus atores e oferecendo isso tudo ao seu público, atrás de si. Em cena, Goran Bregovic conta a sua história.

“Alkohol” pode, sim, ser visto como um show musical em que músicas de diferentes culturas (cigana, búlgara, eslava, latina!,...) se encontram. Mas, se o leitor do show reconhecer que essa é a vida do seu maestro e de seu intérprete mais importante, a forma de ouvir se modifica. “Weddings and Funerals Orchestra” é uma reunião de grupos musicais representativos desses sons, dessas culturas, desses lugares que, para nós, é distante. Não importa a cultura, todos os humanos vivem a realidade de funerais e a realidade de casamentos. E esse eixo gira em diversas velocidades, em diferentes mãos, mas gira. O espetáculo de abertura do Porto Alegre em Cena de 2010 expressa, como talvez poucos em sua história de aberturas, a realidade composta de diferentes realidades.

Nunca tinha ouvido falar em Goran Bregovic até a produção da revista de programação. Em volta de mim, algumas pessoas também não. Mais adiante, fãs incondicionais do iuguslavo que cantarolavam as letras das músicas e já conheciam não apenas o último CD como outros anteriores e suas participações no cinema. Entre nós, algum outro grupo de espectadores que tinha ouvido um música aqui outra ali sem muita paixão, mas com uma admiração que o fez vir ao show. Pessoas diferentes, repertórios diferentes, o mesmo giro.

A oração do Kyrie Eleison, duas vezes repetida, traz a referência do cristianismo bizantino, a missa cantada medieval e ortodoxa que exige do orante uma postura bastante mais contemplativa e bem menos carismática. É uma oração de Ato Penitencial em que pedimos perdão pelos pecados diante do sacrifício de Cristo. A oração do Sanctus, no mesmo culto, é um ato de louvor diante da transformação de carne e sangue em pão e vinho na eucaristia. O corpo que se renova, morre, mas continua presente.

Em oposição, a música, a dança, a alegria de diversas culturas que celebram a união, a conquista, o amor. “Até que a morte os separe!” encontra, nesse espetáculo, o seu início e o seu fim, enquanto nós celebramos o seu meio. Um meio que vai e vem, que gira da alegria para tristeza, das palmas à oração, do levantar e dançar ao recolher-se na poltrona. Do palco, o que vemos é uma união sincera: assim como o deve ser na vida e na morte.

No meio de uma oração quase fúnebre sem sê-la, uma atriz manda beijinho para seu colega músico do outro lado do palco. Os rapazes debocham, os violinistas cansam, os cantores se concentram à guisa da disciplicência que mostra ser aquilo tudo, antes de qualquer coisa, uma festa. Alen Ademovic seduz quem quer que seja protagonizando, em destaque, a gentileza de Bregovic em que dividir seu brilho com o músico mais novo. A Goran, tal como a Kantor, cabe o papel do professor que vê seus alunos mortos como em Dead Class. Talvez a diferença entre os dois artistas, e entre dos dois espetáculos, seja o fato de que as lembranças de Kantor morrem enquanto as de Bregovic se casam.

Se casam com as nossas, que não esqueceremos a energia vibrante de “Alkohol”.


*

Ficha Técnica:

Compositor e Diretor: Goran Bregovic

Weddings and Funerals Oschestra:

Banda de metais ciganos: Alen Ademovic (tambor, vocal), Bokan Stankovic (trumpete 1), Dalibor Lukic (trumpete 2), Stojan Dimov (saxophone, clarinet), Milos Mihajlovic (trombone 2) e Aleksandar Rajkovic (trombone 3, glockenspiel).

Vozes Búlgaras: Ludmila Radkova-Trajkova e Daniela Radkova-Aleksandrova.

Sexteto de vozes masculinas: Dejan Pesic (1º tenor), Nenad Cica (2º tenor), Igor Arizanovic (2º tenor), Vladimir Rumenic (barítono), Dusan Ljubinkovic (baixo) e Sinisa Dutina (baixa).

Quarteto de cordas: String quartet: Ivana Matejic (1º violin), Bojana Jovanovic (2º violino), Sasa Mirkovic (alto) e Tatjana Jovanovic (violoncelo).

Engenheiro de som: Dusan Vasi

Duração: 2h30min sem intervalo

* Rodrigo Monteiro: Licenciado em Letras - Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.Bacharel em Comunicação Social - Habilitação Realização Audiovisual pela mesma universidade. E mestrando em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Jurado do Troféu Açorianos de Teatro 2010 e, também, do Troféu Braskem 2010, é autor do blog www.teatropoa.blogspot.com de Crítica Teatral de Porto Alegre

Um comentário:

Unknown disse...

Um dos melhores espetáculos que já assisti. De longe! Gostei do texto! Evandro.