domingo, 12 de setembro de 2010

Rodrigo Monteiro #4: O cantil

Foto: Jonathan Heckler

O bom teatro

Críticos também são humanos e têm lá os seus preconceitos. Sempre olho com receio para um espetáculo cuja técnica é superior à narrativa, quando, para mim, deveria ser sempre ao contrário. Felizmente, encontro no 17º Porto Alegre em Cena um caso interessante em que é possível participar de uma discussão sobre isso: O cantil.

A técnica consiste no seguinte: dois atores-manipuladores irão manipular dois outros atores-bonecos. Os primeiros estão vestidos de preto e mantém uma postura mais próxima da neutralidade possível. Os segundos estão completamente vendados e trazem junto ao corpo ganchos pelo que são pegos por quem os manipula. Senti curiosidade de ver isso em cena tão logo li sobre. Fiquei imaginando o resultado estético, uma vez que um ser humano não é um boneco, não tem o seu peso, a sua mobilidade. Um ser humano tem vida e não pode abdicar dela por um tempo cênico finito. E, como outras vezes já aconteceu, imaginei que seria pouco além disso: um espetáculo em que um grupo diz para o seu público: “Olhem! Nós sabemos fazer isso! Há-há-há!”

Me enganei feio.

Não sei se a opção pela técnica veio antes ou depois do texto escolhido, mas é incrível notar a forma como ambos estão intimamente relacionados. A exceção e a regra, de Bertolt Brecht, encontra em O cantil a sua parte de dizer diferente o que outrora foi dito numa produção tradicional do texto mundo afora através das décadas. O épico brechtiano se renova de uma forma surpreendente e Fran Teixeira, que assina a direção, merece aplausos além da conta.

Em linhas gerais, o texto curto versa a viagem de um Empresário pelo deserto de Yahi em busca de uma concessão de petróleo. Com ele, seguem um Guia e um Carregador. As diferenças entre os três aparecem e o Homem Rico mata o seu guia. A água fica escassa e o cantil do Patrão se esvazia. Num momento, quando pensa ser atacado, o Patrão atira no submisso carregador que tomava água no seu próprio cantil. A peça evolui para a solidão do Empresário desprotegido da polícia em campo ermo e culmina na cena do julgamento em que ele é absolvido uma vez que é compreensível, sendo quem é, ter se sentido ameaçado pelos dois homens de classes inferiores.

Teixeira excluiu a segunda parte e o Guia, concentrando a ação dramática na relação entre o Empresário e o Carregador. Retirou também as falas. E, subverteu Brecht, sendo esse, aliás, o melhor jeito de interpretá-lo, transferindo o épico para dentro da cena de forma tão grandiosa como o dramaturgo propõe para fora dela. A vida do Carregador está nas mãos do seu Empresário, que tem uma arma. Por sua vez, o Empresário se sente coagido pelo Carregador quando o vê tomar água, bem precioso que ele hora não tem. Ambos personagens estão completamente submissos aos seus manipuladores, cujos movimentos são tão belamente construídos que o silêncio da cena e a pouca luz só nos faz ter sempre e maior interesse pelo que acontece em cada pausa.

É extremamente rico em detalhes todo o desempenho do Grupo Teatro Máquina que honra os gaúchos nessa edição do Festival. Chamo a atenção, ainda, para a precisão dos contra-regras que, quase numa coreografia, e por que não numa?, contribuem magistralmente para o que acontece em cada cena.

Nisso, para mim, consiste o bom teatro: algo a se dizer dito bem.

*

Ficha Técnica:
Direção: Fran Teixeira

Elenco: Aline Silva, Ana Luiza Rios, Edivaldo Bastista, Jonahthan Pessoa e Levy Mota

Cenografia: Frederico Teixeira
Figurinos: João Zabaleta
Desenho de Luz: Walter Façanha
Trilha sonora original e sonoplastia: Dustan Gallas
Produção: Levy Mota
Realização: Teatro Máquina
Duração: 40min
Classificação etária: livre

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