terça-feira, 14 de setembro de 2010

Rodrigo Monteiro #8: Um navio no espaço ou Ana Cristina César

Foto: Creative / PMPA

Paulo José e Ana C.

Uma produção que só tem méritos: incrível!

1) Proposta: Trazer a poesia de Ana Cristina César é uma ideia excelente. Menos de trinta anos depois de sua morte, muito pouco se sabe sobre ela. No currículo tradicional das aulas de literatura, com que eu mesmo lidei quando atuava como professor, não se chega a ela nunca. Consegue-se a façanha se o currículo for organizado por gêneros e não por escolas literárias, mas qual escola faz isso? Quantos anos de colégio um professor precisa ter para propor esse avanço? Além do mais, à guisa da enxurrada de blogs pessoais, a poesia tem sido pouco valorizada. Há tempos que livros não são editados e os “novos poetas” já são velhos... A poesia de Ana C. se caracteriza pelo jogo de sentidos mais do que pelo jogo de palavras. A sua potência não está no som, mas na imagem, na hierarquia de semas e de sememas que a autora faz despertar quando encadeia versos sempre curtos. Totalmente desprendida de formas, e bastante próxima dos sentidos, seus textos são atuais enquanto houver homem e solidão. Um espetáculo como esse faz as novas gerações, e também as velhas, descobrir essa poetisa brasileira que merece novos leitores e, também, pesquisadores.

2) Produção: Espetáculos biográficos são perigosos, porque convivem com o imanente risco da chatice narrativa, ou seja, a história terminará quando a protagonista morrer. De fato, esse é o caso de Um navio no espaço ou Ana Cristina César, mas não de todo. O fio que dá liga à trama não é a cronologia dos textos, felizmente, e dos acontecimentos da vida da poetisa, mas a perseguição à pergunta: quem é você Ana C.? O roteiro não responde e fica, assim, solto no espaço como já diz o título. A história voa como voou a protagonista, suas palavras, seus sentidos. A beleza da narrativa desse espetáculo não está nos seus gaps, mas na forma como os fatos pulam sobre eles e avançam. Os vídeos são inseridos na trama de forma muito inteligente como raramente acontece. Para um espetáculo sobre uma escritora, contemplar a palavra escrita é fundamental. E vê-la em foco fechado também. As duas ansiedades são satisfeitas e o resultado é maravilhoso. Além disso, o espaço cênico é preenchido como o é a folha com as palavras de Ana Cristina. Há bagunça, há horizontalidade, há lugares livres. A realidade de Paulo José, que interpreta a si mesmo, convive com a ficção de Ana Kutner, que interpreta Ana C. No entanto, em vários momentos, nos pegamos a pensar em quem está sendo verdadeiro e quem não está, quem está sendo ficcional e quem não está. O duelo, o conflito não é cronológico, mas espaço-temporal. A diegese nasce na relação entre os sentidos e a difícil tarefa de se adequarem às palavras de um idioma e de uma gramática e não pela evolução aristotélica de um personagem a caminho do seu próprio fim. A dramaturgia de Walter Daguerre atualiza para o teatro a poesia de forma a engrandecer as duas artes.

3) Paulo José: Seu carisma, seu reconhecido talento, sua história, sua relação com o Rio Grande do Sul e com o teatro gaúcho faz desse senhor um personagem muito querido. Qualquer coisa que ele diga, qualquer gesto que tenha sempre chamará a atenção e a receberá com devoção. É emocionante vê-lo, ouvi-lo, estar com ele sob o mesmo teto. E seu envolvimento com a cena reage a isso de forma exemplar. Ele sabe que suas piscadas são acompanhadas pelo público, então, é absolutamente discreto apontando a cena para Ana Kutner, sua filha, cujo talento também é herdado da mãe, Dina Sfat. Ana está excelente em cena: o português correto, como não poderia deixar de ser, cai em sua boca de forma natural e viva. Seus sons são realistas, seus movimentos são ágeis e pulsantes, suas intenções são manifestas cheias de juncos sobre os quais entramos e saímos, pulamos e avançamos em profundidade. Não há superficialidade, nem morbidez, o que faz dessa interpretação e da dupla com seu pai, uma das melhores visitas no 17º Porto Alegre em Cena.

Os itens poderiam continuar. A lista de valores dessa produção é grande. Aqui busquei apenas dar a minha contribuição na eleição de alguns. Por fim, o convite para ler Ana Cristina César e assistir ao espetáculo ainda hoje em cartaz.

*

Ficha Técnica:

Texto: Maria Helena Kühner
Dramaturgista: Walter Daguerre
Direção: Paulo José

Elenco: Paulo José e Ana Kutner

Cenário: Fernando Mello da Costa
Figurinos: Kika Lopes
Iluminação: Paulo César Medeiros
Trilha sonora: Alexandre Elias
Videografismo e animação: Rico Vilarouca e Renato Vilarouca
Produção Executiva: Lucia Regina Souza
Direção de Produção: Maria Helena Alvarez
Produção: Carava Produções, Malagueta Produções eAna Kutner
Realização: SESC-SP

Duração: 1h20min
Classificação: 14 anos


*Rodrigo Monteiro: Licenciado em Letras - Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.Bacharel em Comunicação Social - Habilitação Realização Audiovisual pela mesma universidade. E mestrando em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Jurado do Troféu Açorianos de Teatro 2010 e, também, do Troféu Braskem 2010, é autor do blog www.teatropoa.blogspot.com de Crítica Teatral de Porto Alegre

Um comentário:

Anônimo disse...

Uma dramaturgia equivocada e uma atuação débil.