Beth Néspoli: um festival para Dostoievski
Outro espetáculo que, em minha opinião, vale ser visto na mostra é O grande inquisidor, outro texto de Dostoievski. Eu já vi três encenações desse mesmo texto, duas delas no Festival de Porto Alegre, uma dirigida pelo Peter Brook, outra dirigida e interpretada por Patrice Chéreau e vi uma no Rio, interpretada por Domingos de Oliveira. Gostei muito da do Chéreau e, pode ser uma heresia o que vou escrever agora, mas gosto muito, muito mais dessa do Frateschi dirigida por Rubens Rusche do que da montagem do Peter Brook. E tenho um motivo para isso: eu consegui ver claramente uma abordagem, um ângulo, uma “leitura” do texto. Pelo mesmo motivo gostei da abordagem do Chéreau. Nesse caso, ele não “assumia” inteiramente o personagem, daí chamar de leitura, tinha o texto na mão, mas claramente o sabia de cor, estabelecia uma espécie de diálogo entre o artista dos dias de hoje e aquele capítulo do romance Os irmãos Karamazov que fala dos homens e sua fragilidade, tanto para se submeter ao poder e ao autoritarismo, quando para dele usufruir. Chéreau, com seu distanciamento na medida certa, exprimia a um só tempo a compreensão e a compaixão pelo ser humano que somos todos nós, e também o horror pelo que somos capazes.
É bem diferente essa montagem do Frateschi. Como se sabe, nesse capítulo do livro, um personagem conta uma história “fictícia” que teria se passado na Espanha do Século 16, no auge da Inquisição. Jesus teria voltado à Terra, feito alguns milagres, teria sido reconhecido e seguido pelo povo e novamente preso pela Inquisição. Fora torturado, mas nada dissera. Na cela, recebe a visita da autoridade maior da Inquisição. Esse homem de 90 anos se depara, então, com Jesus e com ele tem uma conversa, “explica” os rumos tomados pela Igreja, que ele próprio reconhece serem totalmente opostos aos pregados por Jesus, e justifica tal opção pela fraqueza dos homens que “desejam” se submeter ao poder, que não suportam o livre arbítrio. E condena Jesus por ter primeiro criado homens fracos e depois ter lhes dado uma liberdade que eles não conseguem suportar. Como (bem) disse Rubens Rusche para mim em entrevista ao jornal Estado (eu ainda estava lá quando a peça estreou) esse é o discurso fascista por excelência, o discurso de todas as ditaduras, os homens não sabem decidir por eles mesmos, são crianças que tem de ser guiadas, obviamente por quem faz tal discurso. E, como acontece na Inquisição, aqueles que por acaso são fortes e se rebelam, lutam pela liberdade, a Inquisição, joga na fogueira. Esse “entendimento” do diretor funda sua encenação. E o fato desse Inquisidor, aos 90 anos, portanto perto da morte, se ver diante de Jesus e ter de dar conta de suas atitudes funda, por sua vez, a interpretação de Frateschi.
Diferentemente da opção do Chéreau, Frateschi assume inteiramente a personagem, há uma quarta parede separando o público do palco, é como se ele estivesse realmente na cela diante de Jesus, que também está presente, não é uma cadeira como no caso do Chéreau, mas um ator, Mauro Schames, que embora silencioso, tem participação fundamental, está intenso e atuante com seu olhar. Gosto muito de ambas as opções, do Chéreau e do Frateschi, para mim uma prova de que não há fórmulas em teatro. O texto original de Dostoievski é exatamente o mesmo, mas o espectador sai com compreensões diferentes de cada um dos espetáculos. Eu, pelo menos, saí.
Com alguns gestos de grande força simbólica (que não vou contar para não tirar o prazer do espectador), Frateschi deixa clara a contradição entre o que o Inquisidor diz e o que faz. Faz ver que esse homem fez uma opção, ele também jejuou no deserto um dia, também acreditou nos ideais cristãos de igualdade, mas foi “fraco” e cedeu ao apelo do poder. A contradição de seu discurso vem à tona. É maravilhoso ver “como” isso acontece, como Rusche e Frateschi conseguem “passar” essa leitura nesse trabalho. Eu, que já lera e ouvira várias vezes esse texto, saí do teatro pensando nele de uma forma renovada para mim.
Quatro outros espetáculos serão tratados no próximo post. Até lá!
*Beth Néspoli é jornalista e crítica teatral. Atuou durante 15 anos, entre 1995 e 2010, como repórter especializada em teatro e crítica no Caderno 2, o suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo. Desligou-se da imprensa diária no início do ano para uma temporada de estudos. Atualmente é mestranda no curso de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Nenhum comentário:
Postar um comentário