quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Marta Isaacsson: Happy days

"Oh, fugitivas alegrias, oh, latentes tristezas"

Happy days: a conversa entre dois deuses do teatro teve lugar nesse Porto Alegre em Cena. Bob Wilson encontra Beckett e trava com ele uma aproximação nos mesmos moldes como fez com tantos outros dramaturgos. Não encena o texto, não explora ações de composição da situação dramática. Para Wilson, a dramaturgia possui suas próprias imagens e sobre as quais ele se recusa intervir. É através das palavras que os personagens de Beckett têm a sensação de existirem e esquecer sua miséria. E é para as palavras de Beckett que Bob Wilson abre passagem enquanto a cena corre em paralelo. E, para deixar o texto de Beckett passar com liberdade, compõe um quadro fixo, em que o relevo se aplaina pela disposição frontal dos elementos, conhecida marca da primorosa visualidade de seus espetáculos. Winnie não se encontra soterrada sob a relva queimada como concebeu Beckett. Sua figura emerge de um vulcão de asfalto em direção ao nada, a um vazio luminoso. Quando segura a sombrinha ao alto, temos mesmo a sensação de que a personagem será elevada e absorvida pelo espaço branco do abandono que se encontra acima de sua cabeça. Bob Wilson que já “contou” Hamlet invertendo sua temporalidade, fazendo da tragédia dinamarquesa um sonho pós-morte do herói, suprime completamente todo indício de realismo da situação beckettiniana. Winnie de Bob Wilson habita um espaço mental, e é nele que se vê presa. Ali o passado dita o presente. As fugitivas lembranças surgem como flash de luz que cega a visão sobre a realidade (inclusive aquela do espectador!). A personagem encontra-se refém da memória, de uma realidade talvez tão imaginária quanto seja o presente construído através de sua rememoração. O espaço mental é, então, o espaço do possível e não da realidade.
Dramaturgo de um pessimismo negro, Beckett constrói um universo risível: a miséria de seus personagens é tão forte quanto engraçados são seus comportamentos face a ela. E, para investir na dimensão cômica, Bob Wilson tem a perspicácia de liberar sua atriz das amarras habituais que impõe a seus atores. Se em Quarttet, Isabelle Hupert teve de se dobrar à mecânica humana (voz monocórdia e máscara fixa), Adriana Asti recebe passe livre do diretor para explorar todo seu potencial de comediante. E ela faz com grande competência no primeiro ato da peça. Grande atriz! Quem teve o privilégio de assistir ao espetáculo próximo ao palco, pode desfrutar de suas acrobacias faciais. Asti sabe tirar enorme proveito de seus grandes olhos, acentuando seu olhar que salta em diferentes direções, chegando mesmo, em dado momento, a romper a sólida quarta parede de Bob Wilson (Uau!). E lembremos que, para Beckett, conforme inúmeras rubricas da peça, os olhos são o elemento principal da composição de Winnie. Às contrações da face, Asti alia o detalhamento da enunciação da palavra, arrastando consoantes e trinando vogais. O acento risível do primeiro ato da peça se reforça pela associação de ruídos pontuais à manipulação dos objetos pela atriz, que torna a linguagem da cena familiar àquela dos desenhos animados.
Na peça de Beckett, o segundo ato possui uma densidade bastante diferente daquela do primeiro. Aliás, essa característica aparece em muitos de seus textos de dois atos. Finalmente saído de seu esconderijo o parceiro de Winnie tem o revolver a altura de sua mão... O suspense reina. O espetáculo de Bob Wilson, infelizmente, não encontra um tom singular para fazer uma virada. Um interessante diálogo entre variações vocais da atriz e rápidas mudanças de iluminação buscam construir o clima de tensão do momento que pode vir a ser o último de uma existência humana. Mas não é suficiente para dar conta. Asti mantém o jogo no mesmo tom do primeiro ato, continua a se consolar na linguagem. O revólver pouco visível sobre as pedras do asfalto negro não sustenta uma ameaça. Nenhuma urgência, nenhuma iminência se coloca. Fica, então, a pergunta: no espaço mental concebido por Bob Wilson, o que exatamente pode interromper a repetição, o que ameaça o fluxo do pensamento reconfortante da fantasia? A realidade que jamais se mostra no espetáculo? Não seria esse o momento, então,...
Já passei da fase de ter pudor de não gostar das criações dos deuses. Quando me desagradam, sou sincera. Mas esse não foi exatamente o caso de Happy days de Bob Wilson. O espetáculo não me desagradou. Abandonei a luneta de Beckett para entrar no universo de Bob Wilson e me diverti no primeiro ato com Asti, mas, ao final, saí com sentimento de incompletude.


* Marta Isaacsson de Souza e Silva é Mestre e Doutora em Estudos Teatrais (Paris III), professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas na mesma Universidade. É, também, pesquisadora CNPq da área de Artes.

2 comentários:

Rosite Val disse...

Olá, Marta. Vi "Happy Days" e gostei muito, apesar de ter sentido falta de "algo mais" no final. Em compensação ver uma atriz tão milimetricamente perfeita como a Asti é de lavar a alma. Também vi o espetáculo bem de perto e pude desfrutar de uma atuação tão genial que muitos nem sequer perceberam.
Evoé!
Rosite Val
(Atriz e Jornalista e uma das suas alunas na oficina)

jacque disse...

Perfeito comentário, Marta. Detalhado, preciso e inteligente,
sem medo de ser iconoclasta.
Jacqueline Pinzon