Hamelin, o encantador de plateias!
O 17º Porto Alegre em Cena me proporcionou uma grande alegria, não só pelo convite para fazer a crítica de uma das peças do Festival, mas pela carta que recebi falando da honra de receber a minha contribuição como uma das pessoas de destaque nas artes cênicas de nossa cidade e do sul do país. Quer carinho e reconhecimento maior do que este? E, para completar minha alegria, a peça contemplada foi Hamelin. Fui assistir hoje sábado no Teatro Bruno Kiefer na Casa de Cultura Mário Quintana. Uma fila imensa que dava voltas, teatro lotado, um público totalmente diferente do que nós do teatro estamos acostumados a ver. Um público que estava muito ansioso, pois, afinal, tem o Brichta no elenco! Opa, mas a produção do Poa em Cena esqueceu de avisar. O global, o galã com verve de comediante, o cantor carismático de Os produtores, o Agnaldo de Separação, não veio? Não acredito! Pra surpresa de todos da plateia, o que veio foi o Vladimir Brichta, o ator de teatro!
Bom, então vamos lá. 19 horas, tudo preparado, o áudio de abertura pede para desligar os celulares, terceiro sinal, apagam-se as luzes e o elenco entra em cena. Quando tudo parecia começar, toca um celular na primeira fila. Neste momento, atores e platéia tiveram com certeza o mesmo subtexto, mas prefiro não falar e continuar, assim como fez o elenco.
O texto é do premiado autor espanhol Juan Mayorga, considerado um dos autores mais destacados de sua geração. Mayorga escreveu Hamelin em 2005. Hamelin tem título inspirado no Flautista de Hamelin. É uma peça realista e com uma proposta diferenciada, deixar fluir a imaginação do espectador e faz refletir sobre sua realidade. Hamelin nos fala de pedofilia e conta a história de um jovem Juiz determinado a provar que um importante membro da cidade abusou sexualmente de uma criança. Ao lutar para reunir provas, o Juiz descobre como é difícil encontrar culpados e distinguir o bem e o mal. Num clima de filme de suspense e, através de uma dramaturgia não convencional, o espetáculo nos mostra a impotência de uma sociedade em proteger a inocência das suas crianças e a impossibilidade de chegar a uma única conclusão. Mayorga provoca e nos faz pensar sobre a realidade, em que, muitas vezes, a palavra é tudo o que se tem para apurar uma verdade.
Começo esta crítica pelo diretor André Paes Leme pelo acerto na escolha do texto e do elenco. Pela escolha dos profissionais da cenografia e dos figurinos, que deixam evidente que o que vale em cena é: o texto, atuação e a imaginação. Até os curtos blackouts nos fazem imaginar a cena. André Paes Leme valeu pelo acerto atendendo ao pedido de Mayorga na direção deste grande jogo, em que a plateia é convidada a sentir, a imaginar e a enxergar tudo que ela não quer ver. As cores neutras no cenário e nos figurinos tirados do dia a dia nos fazem imaginar as cores e os detalhes e também ver as fotos, os slides e tudo que vem à tona em nossos pensamentos no momento certo da representação. A plateia sentiu, imaginou, criou, refletiu e se emocionou. Mayorga deve estar feliz por ver seu texto ser tão bem cuidado, mostrado, representado, dirigido, respeitando todos os implícitos desejos de um dramaturgo.
Durante 1hora e meia, todos do elenco tiveram o público em suas mãos. A plateia atenta a tudo, às vezes, parecia nem respirar, nem piscar os olhos. Um grande clima de suspense regado a grandes atuações. Os atores, além dos seus personagens que circulavam em torno do Juiz Monteiro (Vladimir Brichta), também comentavam as cenas, falavam as rubricas, operavam a luz e o som numa verdadeira aula de teatro e de interpretação. Emoção e naturalidade fluíam em cena, tudo muito bem marcado. O ator Oscar Saraiva, interpretando o menino de 10 anos que sofreu abuso, foi um dos pontos altos. Todos pararam para admirar aquele momento inédito de interpretação que comoveu a todos, mas não vimos sua interpretação, vimos, sim, o menininho frágil e nervoso.
Chamo a atenção para Alexandre Mello quando vilão da história numa atuação sincera e carregada de emoção. No confronto de Paulo (pedófilo) com o Juiz Monteiro (Brichta), que surpreende numa atuação mais dramática, um momento relevante e de grande expectativa na plateia. Vi no palco um grupo de atores “de primeira”, entre eles Alexandre Dantas, Vladimir Brichta, Oscar Saraiva e as atrizes Claudia Ventura e Patrícia Simões que trabalham com o que há de mais precioso no teatro, a essência do ator e do texto sem a necessidade de recursos técnicos para prender a atenção. O que mais chama a atenção em Hamelin é a entrega dos atores em todos os momentos da peça.
“MERDA” ao HAMELIN!
*
Ficha Técnica:
Texto: Juan Mayorga
Tradução: António Gonçalves e Patrícia Simões
Direção: André Paes Leme
Elenco: Vladimir Brichta, Alexandre Dantas, Alexandre Mello, Claudia Ventura, Oscar Saraiva e Patrícia Simões
Cenografia: Carlos Alberto Nunes
Figurinos: Luciana Maia
Desenho de Luz: Renato Machado
Direção Musical: Lucas Ciavatta
Direção de Produção: Andrea Alves e Claudia Marques
Produção Executiva: Leila Moreno
Coprodução: Sarau Agência de Cultura Brasileira e Fábrica de Eventos
Idealização: Dupla Arte
Duração: 1h30min
Classificação etária: 16 anos.
*
Vanja Ca Michel:
Atriz, Diretora, Produtora e Professora de Artes Cênicas. Com 31 anos de teatro, foi atriz em vários espetáculos infantis, adultos, musicais e óperas. Trabalhou na produção de espetáculos e musicais do eixo RJ-SP. Criadora do espetáculo Adolescer, há 8 anos em cartaz, ela assina roteiro, direção e produção. Este ano está na direção e na produção da comédia Monstras S.A, ambas de sua Cia de Teatro, a Cia Déjà-vu e na Produção da peça infantil A arca de Noé e O despertar da primavera, ambas com Direção de Zé Adão Barbosa em cartaz no mês de outubro nos Theatro São Pedro e Teatro Renascença. É Diretora da Cia Déjà-vu de Teatro com sede em Porto Alegre.
2 comentários:
Como é bom ver uma peça normal de vez em quando. Arrasou, Vanja !
Pois é, alguns não gostam de Happy Days, outros aplaudem Hamelin. É ótimo que as opiniões sejam tão díspares. Vi Hamelin na primeira temporada em SP e achei tudo muito chato (Muito ao contrário de Happy Days). Talvez por ser normal mesmo. Não gosto de nada "normal". Mas essa é apenas minha opinião, minha ignorância, meu olhar míope.
Postar um comentário