sábado, 11 de setembro de 2010

Rodrigo Monteiro #3: Happy days

Foto: Luciano Romano

Winnie e seu buraco

Para mim, há duas questões fundamentais em Happy days: Winnie e o buraco. E quando esses dois pontos são colocados acima de Beckett, de Wilson e de Asti, o escritor irlandês, o diretor norte-americano e a atriz italiana, tudo fica melhor.

Tratemos do buraco:

É imprescindível que Winnie esteja enterrada num buraco. Ele é a metáfora dos relacionamentos, do emprego, da condição social, da doença, da virtualidade e de qualquer situação que aprisione o homem. Winnie não pode sair desse buraco que, cada vez mais, a prende até escondê-la por completo. Nisso consiste a tragédia beckettiana: há algo exterior aos personagens e à situação que determina o destino da história. Nada é possível fazer e lutar contra isso consiste no mal de quem o ousa.

O buraco é uma pequena elevação de terra, o que possibilita ao espectador pensar que, em volta, há mais buracos e, consequentemente, mais pessoas enterradas. É tudo muito simples, porque deve ser tudo muito cotidiano. Todos estamos metidos em buracos e disso não pode ser feito um drama. Beckett não é nem dramático, nem pós-dramático: é adramático, porque, em seus textos, não há nem drama convergente, nem divergente. Não há princípio, nem fim, nem começo, nem causa, nem efeito.

Willie, o marido de Winnie, sai do buraco, mas isso não se trata de um clímax no texto de 1961. Beckett apenas usa de seu sadismo para destruir Winnie que, gostaria de sair e sai através de sua imaginação. Os olhos de Willie caem porque não conseguem fitar a esposa. Terá ele mesmo saído? Será ele o próprio Willie ou já outro ser? Por que eles nunca se olham? Não há, para Winnie, a possibilidade de saída de sua condição e ela precisa se conformar com isso. E essa conformação fica, com certeza, muito difícil diante da saída de Willie. O destino não é nem mal, nem bom. Ele é.

Bob Wilson não prendeu sua Winnie (Asti) num buraco. Em primeiro lugar, o cenário não é uma elevação casual, mas um pequeno vulcão. Em segundo lugar, Adriana Asti se movimenta bastante em sua cadeira e a possibilidade da atriz pôr-se em pé é sempre presente. É sabido que Wilson, em sua técnica bem marcada, leva os sentidos de seus trabalhos para lugares divergentes, o que, muitas vezes, enriquece a produção. Aqui, a divergência confunde, atrapalha, empobrece. As cores fortes, a iluminação excessiva cansa o olhar e desvia a atenção para o aspecto plástico de algo que não carece de plasticidade, porque vive de palpabilidade. Duas peças em uma só: uma Wilson e uma de Beckett. E eu prefiro ficar com a segunda nesse caso, apesar de achar bonito o raio em neon e o cabelo amarelo, ambas grafias sem nenhuma importância para a narrativa.

Tratemos de Winnie:

Há uma frase de Alfred Alvarez, um ensaísta inglês bastante conhecido por seus textos sobre o suicídio, e que também escreveu um livro cujo título é Samuel Beckett (lançado em 1973), que torna presente qualquer coisa que se diga sobre Winnie:

“Benditos sejam os otimistas, porque eles serão enterrados vivos.”

Winnie dá boas vindas ao dia todo o dia. Reconstrói o seu mundo com suas palavras, se diverte com tarefas simples, engrandece a pequenice do seu contidiano. Em nenhum momento, ela reage contra a sua condição de forma direta, mas, indiretamente, não se deixa abater por ela. Winnie é a heroína contraépica, a vilã de nossas histórias pessoais. Quem almeja por um levante, por um mudar de posição, por uma ação, odeia Winnie. Winnie que canta “A viúva alegre”, uma opereta do fim do século XIX, com a letra de Beckett, sorri sempre.

Tua mão está fria
E tem um tremor
Ela não tremia
Sem o teu amor.
Mas se me desdouro
Em me declarar,
Tendo tu tanto ouro
Não devo te amar.

Winnie de Asti: as palavras têm cores e têm ritmos, têm ondas e têm marés. Excelente a interpretação da personagem que cativa o público sorridente com suas piadas, suas memórias, sua doçura. Nisso, Asti concretiza o que dissera o diretor sobre a peça:

“Eu gosto de “Happy days”, porque é, ao mesmo tempo, muito simples e extremamente complexo. Algo que diz de imediato o que é a situação. Se você compra um ingresso para uma peça chamada “Dias felizes”, e você entra no teatro e vê uma mulher enterrada até o pescoço, você pode esquecer as especificidades e começar a experimentar algo que o prende.”

E esse algo que nos prende, por mais presos que possamos estar, não precisa tornar nossos dias tristes. E, se assim ficamos, é porque não temos a mesma força de Winnie, aquela que nasce da terra e pode dar frutos, apesar das amarras de Wilson, nessa produção, serem tão frágeis.

*
Ficha Técnica:

Texto: Samuel Beckett
Direção, cenário e concepção de luz: Robert Wilson
Assistente: Daniel Schulze
Assistente de Direção: Christoph Schletz
Dramaturgia: Ellen Hammer

Elenco:
Adriana Asti (Winnie)
Yann de Graval (Willie)

Diretor Técnico: Amerigo Varesi
Desenho de Luz: A.J. Weissbard
Supervisão: Marcello Lumac
Figurinos e Maquiagem: Jacques Reynaud

Desenho de Som: Emre Sevindi
Técnico de Som: Paolo Cillerai
Eletricista: Fabio Bozzetta
Diretora de Palco: Sue Jane Stoker/Sara Thaiz Bozano
Técnico de Palco: Antonio Verde
Cabelo e Maquiagem: Jacques Reynaud/Mariarita Parisi
Administração da Companhia: Gaia Scaglione
Direção de Produção: Kristine Grazioli
Produção: Change Performing Arts e CRT (Milão/Itália) Elisabetta di Mambro e Franco Laera


*
Rodrigo Monteiro: Licenciado em Letras - Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.Bacharel em Comunicação Social - Habilitação Realização Audiovisual pela mesma universidade. E mestrando em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Jurado do Troféu Açorianos de Teatro 2010 e, também, do Troféu Braskem 2010, é autor do blog www.teatropoa.blogspot.com de Crítica Teatral de Porto Alegre

3 comentários:

Olavo Amaro da Silveira disse...

Rodrigo, eu não gostei do espetáculo... Ali há muito Bob Wilson, e uma grande atriz que tenta (e consegue, claro) fazer aparecer o Becket. Já assisti a algumas montagens de Mr. Wilson, teatro, ópera, musical, e mesmo ele em cena num monólogo de Hamlet, tudo muito bom, de "encher os olhos". Mas parece que sua fórmula do ciclorama com luz azul, do foco branco bem fechado no rosto, dos raios duros de neon, da marcação das mãos dos atores ,etc. não casaram bem com o texto. Wilson tem uma linguagem muito clara nas marcações, nos deslocamentos dos atores-marionetes, nas posições estáticas que estes tomam na encenação, e esta peça, obviamente não tem espaço para isto. Também já assisti a algumas montagens de Happy Days, e todas tinham o cenário e figurino mais adequados. Acho que o texto requer algo mais sujo, mais "excessivo", talvez um pouco barroco. Me incomodou muito o "vulcão". Eu também tinha a impressão que Winnie poderia sair quando quisesse, me perguntava como ela ficaria só com a cabeça de fora no segundo ato, e realmente aquele manto preto sobre os "triângulos" do vulcão não convence. Enfim, saí decepcionado: uma grande atriz, um grande texto, mas uma concepção visual equivocada. Aliás, fico me perguntando se Happy Days precisa de um diretor... Talvez só uma grande atriz bastasse. E ao menos tivemos isto lá no São Pedro.

Camilo de Lélis disse...

Vejo acontecer aqui em Porto Alegre, o que já ocorreu há muito tempo na Alemanha com O Cavaleiro Negro, montagem de Bob Wilson, com roteiro de Burroughs e trilha de Tom Waits, quando Wilson foi citado pela crítica como "Das Koenig des Langweilig" (o rei da monotonia). É um artista que não se renova de maneira profunda e isso só acontece aos deuses, mas mesmo os deuses têm seu crepúsculo:"Götter Dämmerung" em Porto Alegre, quem diria ?
Camilo de Lélis

Olavo Amaro da Silveira disse...

Pois Black Rider foi o primeiro espetáculo que assisti de Bob Wilson. Foi no Théâtre du Chatelet, em Paris, há uns vinte anos! Foi époustoflant! O texto, as músicas, mas principalmente a encenação. Este Bob Wilson é maravilhoso, pensava eu! E é mesmo! Ainda tenho claras as imagens do musical, e as revi em Madam Butterfly na Opéra Bastille, e agora em Happy Days. Mas com minha "tacanhice" textocentrista ainda penso que Happy Days não casou bem lá com Black Rider.